Daniel Alves, futebolista brasileiro mulato que joga na Liga Espanhola, foi protagonista de mais um epifenómeno recente ao ter natural e apressadamente comido uma banana que lhe fora atirada da bancada porque tinha de marcar um canto para dar alento a uma época do Barcelona que ameaçava não ser famosa. Episódio caricato que serviu de pretexto a mais uma onda de indignação antirracista que não costuma deixar escapar um qualquer incidente para agitar estafados moralismos.
Eles espraiam-se dos campos de futebol aos mais sofisticados centros de investigação universitária, como se entre o conhecimento de senso comum e o saber qualificado não fossem necessárias fronteiras; como se tivesse desaparecido a necessidade de se questionar o óbvio de tão obviamente óbvio que é; como se a preguiça intelectual tivesse corroído o sentido crítico; como se o conhecimento sobre as sociedades e sobre a condição humana não implicasse dúvidas e interrogações constantes.
Daí que o episódio sirva para evidenciar alguns sintomas. Um deles, o de a passagem do tempo ter baralhado, e baralhar cada vez mais, o lugar do rico e do pobre nos fenómenos raciais. Outro, o de terem passado a existir minorias e minorias raciais. Algumas temporárias que, por isso, romperam com a condição tradicional das minorias. Basta a um indivíduo pertencente a uma minoria racial que viva em Lisboa ou em Luanda uma viagem de avião de regresso temporário ou definitivo à sua terra natal para, em poucas horas, passar de minoria a maioria. Um terceiro sintoma, o de um hipotético incidente racial em Londres noticiado pelas televisões poder gerar retaliações imediatas, quem sabe se com carga mais radical, em Joanesburgo, Islamabad ou Caracas. As sociedades de hoje vivem pressões constantes a este nível.
Os tempos para radicalismos e violências raciais deixaram definitivamente de existir, muito em particular para as sociedades da Europa Ocidental, cujos cidadãos, como outros, marcam presença em diversos lugares do mundo. Só se não quisermos é que não percebemos que a era digital fez esboroar parte essencial do núcleo constitutivo do que se designa de extrema-direita que, desse modo, jamais será semelhante à do passado.
Assinalo ainda a existência de uma outra variante de minoria racial. Incluo-me no grupo das minorias que, por muito que mudem de país, nunca deixarão de o ser dada a diversidade de ascendências miscigenadas, entre cores de pele, terras de origem e credos religiosos (no meu caso sem ascendência europeia, o que me tem dispensado da necessidade de assassinar esse pai). E como também já fui presenteado com bananas ou um cor de merda nesta querida Europa por duvidar de certas ortodoxias, acrescento um outro sintoma dos dias que correm. Entre os beneméritos que me presentearam, como ao representante escurinho da troika, pontificam os progressistas, a vanguarda dos indignados contra as injustiças sociais, entre elas o racismo.
Se o mundo já não é o que era, a questão é que, com o beneplácito de académicos, escritores, jornalistas, ativistas, artistas, entre outros, certas palavras, ideias, conceitos, teorias e demais instrumentos utilizados para captar e interpretar o mundo que nos rodeia e do qual somos parte integrante resultam de um outro tempo histórico marcadamente distinto que transportamos à força para a atualidade. Para tais produtos congelados faria muita falta uma ASAE.
Por outro lado, como vou circulando entre países nos antípodas raciais (um de maioria branca europeu e outro de maioria negra africano), só se andasse em excesso distraído é que não perceberia que é muitíssimo mais sensível, frágil ou arriscada a situação das minorias raciais em sociedades maioritariamente negras (ou islâmicas, se o atributo fosse étnico-religioso) do que a situação das minorias em sociedades maioritariamente brancas da Europa Ocidental ou outras que funcionam em moldes equivalentes. E o debate sobre responsabilidades históricas mereceria algumas reflexões, por agora inoportunas.
Posto isto, registo preto no branco um dogma: o racismo deixou de existir. E é com essa mesma certeza que reproduzo uma tese de Rosa Cabecinhas, autora que explica que o sexo, a idade e a cor da pele são atributos que condicionam sempre as nossas relações uns com os outros. Logo, afirmar que o racismo deixou de existir é em absoluto compatível com a afirmação de que o atributo da cor da pele mantém a sua relevância. Sendo óbvio que existem relações inter-raciais, não é nada óbvio que elas gerem racismo nos moldes históricos e sociais que permitiram a instituição e rotulagem de tal fenómeno e conceito.
O que está a acontecer é como se, entre a segunda metade do século XIX e a primeira do XX, se tivesse persistido em continuar a chamar escravatura ao fenómeno que lhe sucedeu, o racismo, mesmo depois de abolida a primeira. É indiscutível que ambos os fenómenos são moralmente inaceitáveis, mas não é menos certo que, na longa história da humanidade, a transição da escravatura para o racismo constituiu um notável progresso civilizacional.
Com a derrota do nazismo, no hemisfério norte, o fim do apartheid, no hemisfério sul, os processos das independências asiáticas e africanas que já levam mais de meio século e com o fim da guerra fria, o mundo sofreu transformações profundas que tornam impossível qualquer retorno ao passado em matéria de relações raciais. E jamais vamos perceber no que o mundo se tornou, de facto, enquanto persistirmos em recorrer a velhos rótulos ou fórmulas explicativas. O racismo é um caso típico de preguiça e dissimulação intelectuais universalmente partilhadas.
Quando alguém recorre ao termo racismo automaticamente ativa na sua e na nossa mente um inevitável dogma maniqueísta: de um lado o branco, o eterno carrasco; do outro o negro, a eterna vítima. Depois, quando vivemos o dia-a-dia e circulamos pelo mundo de hoje quase nada bate certo. Queixam-se os negros, queixam-se os brancos, queixam-se os mulatos, queixam-se os indianos, queixam-se os árabes, queixam-se os chineses. Porém, sobra-nos uma incurável subserviência a doutos censores. São eles que (híper)validam umas queixas e transformam outras em invisíveis através de uma magia quase divina que lhes permite selecionar quem tem ou não direito a indignação, a proteção e em que termos.
Termino como comecei, com futebol. Quase não se deu pela expulsão sumária de um indivíduo pertencente a uma minoria racial imigrante, treinador português branco que ganhava a vida em Moçambique, meses antes de um outro, jogador brasileiro mulato, comer uma banana num jogo em Espanha e por lá continuar uma merecida e justamente bem paga carreira de sucesso. Terá sido mera chicotada psicológica?…