“Este [Hidrogénio] é mesmo um caminho que temos e que devemos trilhar”
(João Pedro Matos Fernandes, 2021)
Portugal é Lisboa e o resto é paisagem. Uma paisagem onde se multiplica bicharada, expandindo-se ou regressando mesmo algumas espécies (caso do Esquilo, da Cabra-brava, do Lince ou do Urso). Uma paisagem que abriga cerca de metade de toda a biodiversidade europeia, incluindo dezenas e dezenas de espécies que só no nosso país existem. Numa paisagem vazia de gente, abandonada, o “verde” afigura-se como uma rara oportunidade.
Todavia, esse verde vê-se ameaçado por uma visão também ela dita verde com a qual terá dificuldade em competir: a descarbonização. Terras pobres, despovoadas, remotas são hoje cobiçadas para uma nova paisagem onde os rios se enchem de barragens, as cristas montanhosas de torres eólicas, o resto de plantações de eucaliptos ou estufas de frutos vermelhos, de desertos negros de painéis solares ou dos buracos de minas a céu aberto.
Este novo verde progride com a ajuda de outro verde, o das notas: são milhares de milhões pagos por todos nós para grandes negociatas obscuras (lembremos as recentes barragens da EDP ou a controvérsia do investimento no hidrogénio). Pagamos a peso de ouro, portanto, para se destruírem as nossas paisagens em nome do planeta. E sobram ainda uns trocos para calar quem vê o seu quintal destruído, aliciando municípios a serem parte interessada e prometendo meia dúzia de postos de trabalho tão qualificados como mal pagos (os novos engenheiros dos 800€ por mês) – note-se que este foi um ponto valorizado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) na Torre-Bela, convenientemente esquecendo que a meia dúzia de empregos criados leva à destruição de outros (empregos no turismo, na cinegética, na produção florestal, etc.).
O mais recente alvo é o vale do Alto Ceira, na Serra do Açor. Aqui, Pampilhosa da Serra, onde as escombreiras das minas contaminam as águas do Zêzere, onde a meio do século passado se impôs um complexo hidro-elétrico mas a prometida luz só chegou décadas mais tarde e paga pelos filhos da terra, onde os cabeços de encheram de torres eólicas num rasto de contestação em tribunal, há um projeto para hidrogénio verde com as águas do Ceira e mais de 200 ha de painéis solares. Longe de tudo? Numa das zonas com menos horas de Sol do país? Em vertentes de elevado pendor? Onde os matos prosperam e o fogo frequentemente os visita? Sim, porque sendo um mau contexto é ao preço da uva mijona: o valor de um T1 em Lisboa chega e sobra.
É esta área uma joia da natureza, com cursos de água povoados por Trutas, Enguias ou Lontras, Bordalos, Bogas e Barbos, Lagartos de água e Salamandras lusitânicas, Toirões, Tritões, Melros d’água; com lameiros escondendo raridades como a Festuca rothmaleri ou as Aurínias; matos ora dominados por Urzes, Giestas ou Estevas, abrigando Javalis, Perdizes ou Coelhos e raros Tartaranhões, ou protegidos Narcisos; rochas, cascalheiras ou muros de xisto, com comunidades brio-liquénicas, com protegidas e endémicas Festucas, Teucrium salviastrum ou Murbeckiella sousae, além da Arabis beirana, exclusiva desta serra, assim como Rapinas, Víboras ou Escorpiões; e bosques autóctones variados – Pinhais, Salgueirais, Amiais, Carvalhais, Sobreirais, Azinhais, Medronhais, Soutos com Castanheiros centenários, isto além dos raríssimos Azereirais (a Serra do Açor tem o maior contingente mundial desta relíquia terciária) – onde se avistam Veados e Corços, Gilbardeiras e Hepáticas, Musgos e Líquenes, Azevinhos ou Esquilos, etc.
Aqui se tem investido neste valor natural, seja em turismo de natureza (cama e comida, piscinas, percursos, museus, etc.), caça turística, produtos regionais, cultura (aldeias históricas, aldeias do xisto), mel ou medronho. Aqui se desenvolvem vários pequenos projetos de desenvolvimento sustentável, apesar dos escassos apoios, ou se tem apostado na certificação. Aqui os municípios usam o verde como bandeira, incluindo a câmara municipal em questão: “Pampilhosa da Serra inspira natureza”. E em vez de se aproveitar quer o trabalho já feito, quer o próprio contexto da ação climática – seja na remuneração de serviços de ecossistema prevista no PRR ou no sequestro de carbono – a inspiração parece recair nessa estranha forma de ajudar o ambiente em que se troca natureza por negócios que a destroem (solos nus, perda de solo, águas poluídas, cheias, perdas de biodiversidade, paisagens artificializadas).
E como se sabe desta inspiração? Sabe-se porque a Junta de Freguesia de Fajão – tiro o meu chapéu a Carlos Simões, seu novo presidente – resolveu, e muito bem, diga-se, auscultar as populações quando foi chamada a pronunciar-se, caso contrário continuaria no segredo dos deuses entre a CM de Pampilhosa da Serra e a Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra. Pois é, tal como a natureza, também as pessoas são secundárias nestes processos. O que também não é nenhuma novidade, bastando atender à chacina da Torre Bela a antecipar o resultado do Estudo Ambiental, ou aos contratos de Lítio assinados com a Participação Pública a decorrer. É o “quero, posso e mando” ao serviço de um futuro verde.
Quer isto dizer que toda a ação climática é errada? Não, claro que não. Antes que este é um terreno fértil para aldrabices e corrupção, autoritarismo ou manipulação. Que não chega um “temos mesmo de trilhar” da boca de Matos Fernandes. Não, Sr. Ministro, não “temos mesmo” de transformar a nossa natureza, as nossas paisagens, saberes e sabores, fauna e flora, etc., no carro-vassoura da China, maior poluidor mundial, e, por sinal, dona da EDP e da REN. Não “temos mesmo” de ser o caixote do lixo do planeta. O que temos mesmo, Sr. Ministro, é de acabar com o obscurantismo, trocando-o por boas práticas. O que temos mesmo é de exigir que o seu ministério se preste a informar, envolver, saber escutar, apelar à participação, estabelecer compromissos, debater prós e contras, a primar pela transparência.