Com a quantidade de maluquinhos que há por aí, não é certamente de excluir que um magneto (uma daquelas coisas que, por motivos decorativos ou outros, se aplicam às portas dos frigoríficos) com a letra Z, símbolo da invasão russa da Ucrânia, pudesse estar disponível numa banca de qualquer encontro partidário. Seria estranho, mas não impossível. Como dizia Aristóteles, referindo-se à tragédia, é verosímil que as coisas se passem por vezes contrariamente à verosimilhança. Acontece que foi na Festa do Avante que o objecto foi descoberto por José Pacheco Pereira, que, com louvável diligência de arquivista, o recolheu para a colecção da associação “Ephemera”. O PC, quando a coisa veio a público, apressou-se a declarar que a organização nada tinha a ver com o tal magneto e que ele ali fora depositado por um “visitante”.
Admitamos, com boa fé, que sim. Por várias óbvias razões, acho muito provável que a organização não tivesse qualquer responsabilidade directa na presença do magneto. Há coisas que não podem ser explícitas. Não convém andar com torpezas demasiado volumosas às costas. Custa muito. Ainda conheci, nos anos 80, comunistas que negavam penosamente a existência do pacto germano-soviético (um deles fechava a mulher em casa à chave para não o trair, já agora). Cuidado e encobrimento são reflexos comuns no PC. Dito isto, é difícil conter a curiosidade sobre a identidade do “visitante” e porque foi ele “visitar” a Festa. Seria um putinista russo – ou um agente da CIA apostado em descredibilizar o PCP?
Mas o meu ponto é outro. O meu ponto é que, somando tudo, é muito menos inverosímil que o tal magneto tivesse aparecido na Festa do Avante do que num encontro de qualquer outro partido português. E quais as razões dessa particular verosimilhança? Vamos ver.
Jerónimo de Sousa convidou-nos a todos, antes do evento, a vir à Festa com “os olhos limpos de preconceito”. A que “preconceito” se referia ele? Sem dúvida àquilo que ele julga ser o preconceito genérico contra o PCP. Mas também – é impossível pensar de outra maneira – a um “preconceito” muito mais específico: aquele que consiste em pensar que o PC apoia a bárbara invasão putinista da Ucrânia. Acontece, no entanto, que se Jerónimo de Sousa quer pelo menos combater este último “preconceito”, a estratégia seguida falha em toda a linha. Porque as voltas e voltinhas todas que o PC dá conduzem inexoravelmente o cidadão comum a convencer-se que o apoio é mesmo real, por mais truques verbais que o procurem disfarçar. E a Festa, se alguma coisa, contribuiu para tornar a convicção ainda mais sólida.
Os truques, de resto, são simples e costumeiros: a indistinção entre agressor e agredido; a inversão de relações causais patentes; a afirmação de um princípio de causalidade única do mal (os Estados Unidos, que, através da NATO, arrastam a Europa); o salto para um plano de generalidade protectora (“do lado da paz e contra a guerra”); etc. Tudo isto, que faz parte do repertório clássico do PC e dos seus apêndices, já o conhecemos de há muito tempo. Nada mudou. Nada de nada.
Foi o que Jerónimo de Sousa disse no discurso de encerramento. E foi o que, por exemplo, Ângelo Alves, membro da comissão política do PCP, também disse. Face à “crise do capitalismo”, “o imperialismo escolheu a linha do confronto”. Mas, acrescentou, há razões para optimismo: tudo isso, continuou em delírio, é sinal do “declínio do capitalismo”. Ofereço uma viagem a S. Petersburgo – ou Leninegrado, como o PC ainda gosta de lhe chamar – a quem consiga aqui descobrir que a Rússia invadiu a Ucrânia. Os debates da Festa, por sua vez, foram exemplares do tal salto para a generalidade protectora, em versão exclamativa: “Pela paz e solidariedade, na Europa e no mundo!”; “Quem quer a guerra? A juventude luta pela paz!”; “Não ao militarismo e à guerra! Por um mundo de paz e cooperação!”.
Às vezes pergunto-me quem é que o PC julga que engana com estas coisas. Ou ainda se quer enganar alguém. Ou até se a distinção entre a mentira e a verdade faz sentido para aquela gente. Esta última interrogação não é disparatada, tratando-se de um partido cujo principal herói, Lenine, foi o inventor do totalitarismo e cujo “Sol da Terra” costumava ser a defunta U.R.S.S., célebre pelo seu regime de mentira permanente e de constante encobrimento de tudo – ao ponto de o recentemente desaparecido Gorbachov, que o PC, de Cunhal aos nossos dias, sempre condenou, ter tido que adoptar a palavra glasnost, transparência, como símbolo das suas tentativas de reformas naquele idílico lugar.
Terá, ao menos, enganado os artistas convidados? Não creio. José Milhazes, como é sabido, tentou apelar ao sentido de humanidade e de solidariedade com as vítimas ucranianas da invasão russa, incitando-os a não tocarem ali. Debalde. Mas foram eles enganados? Não, pura e simplesmente precisavam do dinheiro e, por mais que andem sempre com os princípios na boca, dinheirinho é dinheirinho. Pobre dinheiro, é certo. Pobríssimo, por exemplo, para o horrível e cada vez mais louco Roger Waters, o ex-Pink Floyd, que pede todos os dias à Ucrânia que se renda e a Israel que se suicide. Porque é que ele não veio à Festa? Money, como diz a canção dele. Note-se que não censuro os motivos, eminentemente compreensíveis, mesmo para os ricos ou riquíssimos. Censuro, se é que a palavra convém, apenas o pior: é que a inteligência não abunda, como se pode ver pelas declarações de alguns dos participantes.
Eis uma pequena selecção da actividade espiritual dos pobres-diabos. O cantor Vitorino declarou que foi à Festa porque tem “o coração à esquerda”, embora, sublinhou, a sua posição não seja “coincidente com a de nenhum partido português”. E logo passou para a indistinção entre agressor e agredido e para o salto para a generalidade protectora: “estou profundamente solidário com os povos que estão na guerra”, “ponho-os muitas vezes ao mesmo nível”. Hesito em comentar – não comento. Adolfo Luxúria Canibal, dos “Mão Morta”, apresentou a banda – quando eu era novo, dizia-se “grupo”, ou, ainda mais antiquadamente, “conjunto” – com uma frase imorredoira: “Nós somos os cabrões dos Mão Morta, sempre contra a extrema-direita, mesmo que nos ponham um Z na lapela”. Terá sido contactado pelo “visitante”? Dino D’Santiago entrou imediatamente na generalidade protectora, mantendo que é, como “filho do século XX”, “responsável pelo sangue derramado nesta e em todas as guerras”. Como é bom de ver, ninguém lhe pedia a admissão de uma culpa tão vasta e quase sobre-humana, era uma coisa mais localizada, mas percebe-se que dê jeito. É como num dos exemplos de má-fé que Sartre dá: a menina, no banco de jardim, que deixa que o cavalheiro sentado ao lado lhe segure a mão. Deixando-o acariciá-la, ao mesmo tempo não está ali, está num outro lugar. Recusa a responsabilidade. É e não é ao mesmo tempo. Por fim, temos um saudável retorno a um franco linguajar pela voz de Scúru Fitchádu (é um pseudónimo): “46 anos de Festa. 46 chapadas na tromba desses porcos lá fora”. Não é que ele seja incapaz de outra linguagem. Declara, por exemplo, com profundidade: “O eurocentrismo na avaliação dos conflitos dá que pensar”. Mas as “chapadas na tromba desses porcos lá fora” têm, pensa Scúru (e eu estou de acordo), mais força. Enfim… Agora a sério, José Milhazes, acha que estas cabeças poderiam escutar o seu apelo?
É claro que se fosse um comício do Chega, ouviam-no e ouviam-no muito. Quando um pobre incauto, também a contar com o dinheirinho, lá aceita cantar as suas coisas, caem-lhe todos – a começar pelos que foram à Festa do Avante – em cima. É princípios para aqui, princípios para ali, geografia dos corações, para falar como Vitorino. A coisa é tão mais absurda quanto o Chega, com todos os seus defeitos, não foi servo fervoroso de nenhum Estado totalitário, nem mantem, que eu saiba, cordiais relações com nenhum. Se nalguma coisa ele é mais inconveniente do que o PC é por ter muito mais votos do que ele.
Escrevo isto e penso na divertidíssima Carmo Afonso, que, num momento de puro génio, escreveu na sua coluna do Público: “Por cada vez que alguém compara o BE e o PCP à extrema direita, morre um passarinho silvestre, seca uma flor campestre”. Estarei eu, por uma qualquer omnipotência do pensamento, a dizimar a passarada e a dar cabo das florzinhas? Logo eu que, mal chega a Primavera, fico maravilhado com as margaridas, esses “despretensiosos lugares-comuns da natureza” de que falava Wordsworth, e que, mal posso, me pisgo para um sítio onde rapo um frio dos diabos para só ver árvores e ouvir passarinhos… Alguma coisa me diz que Carmo Afonso, na sua crença na eficácia mágica do pensamento, está errada. Ouço-me a dizer o que Chico Marx dizia a Groucho: Why a duck? Porquê um pato, de facto? Porque não um pacto de fato, que faria exactamente o mesmo sentido – isto é, nenhum? Porque é que umas palavrinhas de bom-senso podem desencadear uma catástrofe ecológica?
Mas não quero discutir mais a proposição especulativa de Carmo Afonso. Quero voltar ao magneto da Festa do Avante. Porque o verdadeiro “Z” que denuncia a existência do gato não é o pobre do magneto, que poderia estar ali ou não estar, pronto para a porta do frigorífico. O verdadeiro “Z” é o que se pode ler e ouvir em filigrana nas palavras pronunciadas e escritas pelo PCP, nomeadamente na Festa. Dito de outra maneira: não é aquilo que se aplica na porta do frigorífico. É o que se vê dentro do frigorífico quando a porta se abre. É o interior do frigorífico que está cheio de “visitantes” que querem destruir a Ucrânia.
PS1. Aparentemente, o jornal “i” sofreu um ataque informático no próprio dia em que publicou uma primeira página desagradável para os artistas que participaram na Festa do Avante. Não manifestei indignação moral face aos ditos artistas e não a manifesto igualmente face à primeira página. Limito-me a constatar que, verosimilmente, os “visitantes” informáticos estão activos.
PS2. António Costa teve ontem, a propósito das pensões, um momento “I am not a crook”. Para quem não tiver reparado, não foi a primeira vez, muito pelo contrário. Nunca lhe aconteceu mal nenhum.