Memória curta é um estado coletivo que caracteriza frequentemente as nossas relações económicas, políticas e sociais, induzindo uma evolução comunitária em ciclos históricos cada vez menos prolongados, com as repetições dos erros a sucederem-se a um ritmo pouco desejável e extraordinariamente erosivo.

Fui acompanhando atentamente a tomada de posse de Pedro Sánchez como presidente do governo espanhol, recordando a noite televisiva do anúncio dos resultados eleitorais e o regozijo que então foi visível em alguns comentadores, que não escondiam uma assumida alegria pelo facto de o PP e do VOX não conseguirem deputados suficientes para formarem uma maioria absoluta. “É uma excelente notícia” afirmava uma, em estado de indisfarçável êxtase. “Sánchez poderá formar governo com uma maioria de esquerda”, declarava outro, metendo no mesmo saco partidos nacionalistas de esquerda e de direita, numa confusão analítica de quem não faz a mais pequena ideia do que se passa no país vizinho. Vozes com um incorporado contentamento, que se juntavam ao coro do travão à extrema direita, indiferentes a uma Espanha profunda e perigosamente dividida e às extremadas linhas vermelhas que o PSOE teria de atravessar para cumprir o seu objetivo de poder.

A ETA

Dirijo-me aos mais jovens que eventualmente não saibam e aos menos jovens que porventura não se recordem, recuperando uma memória histórica e relembrando a ETA. Euskadi Ta Askatasuna foi uma organização terrorista espanhola com origem no País Basco, responsável por centenas de atentados, dos quais resultaram mais de 800 mortos, vários milhares de feridos e destruição de milhões de euros em património. Entre raptos, atentados bombistas e execuções, muitas delas em plena rua, deixou um registo como uma das organizações terroristas mais violentas da história da Europa. Fundada durante o franquismo, foi já em plena democracia que mais se radicalizou e realizou cerca de 80% dos atentados. Não aconteceu lá longe, há centenas de anos atrás! Foi ontem, tendo a sua extinção ocorrido apenas em 2011.

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Esta organização era suportada politicamente por um partido denominado Herri Batasuna, ilegalizado, mas não desaparecido. Sobrevive através do herdeiro EH Bildu que, ao contrário do Sinn Féin da Irlanda do Norte, nunca mostrou qualquer arrependimento pelo passado sangrento.

Sánchez, para formar governo em Espanha, recorreu ao apoio da extrema esquerda, uma ala política sem relevantes mudanças nos últimos 40 anos, naquilo que são as suas bases orientadoras, frequentemente suportadas pela intolerância e pela imposição de ditatoriais linhas de pensamento único, mas que, lamentavelmente, parece que já se convencionou como sendo “normal”.

Necessitou do apoio de partidos independentistas, celebrando um acordo que põe em causa o estado de direito e a própria democracia, em particular pela clara ingerência no poder judicial. Um entendimento com partidos que não querem ser Espanha, mas que vão governar a Espanha, num contrassenso óbvio, que também nos querem fazer acreditar que é “normal”.

Mas pior, negociou com o EH Bildu,  herdeiro do Herri Batasuna, numa anormalidade que ultrapassa todos os limites, todas as linhas vermelhas, entrando no campo do completo absurdo, da pura aberração.

Não se trata de normalizar uma força política de esquerda radical. Trata-se de normalizar o mais ignóbil insulto à democracia, com a complacência de toda uma comunidade quixotesca, refém da estratégia do medo e das “historietas” do bicho papão.

O caso português

Por terras lusitanas, tal e qual como do lado de lá da fronteira, é também a estratégia do medo que vai fazendo escola. Não passa dia em que as alianças à direita não constituam tema, que não se fale do “perigoso” Chega e do temível futuro que nos aguarda com a possível “normalização” deste partido.

Os socialistas, que ainda agora felicitaram a aberração política e social protagonizada pelos seus congéneres espanhóis, tratam de manter o assunto vivo, numa muito bem delineada estratégia de limitar o espaço da direita, enquanto à esquerda se define uma política de estratégias num horizonte sem limites, ultrapassando linhas vermelhas que convenientemente não se vêem e “normalizando” partidos que são um compêndio anti-democracia.

Sem pudor e sem vergonha, a ética e a moral socialistas, tão vigilantes da política de alianças à direita, sofrem de cegueira crónica quando se trata de normalizar partidos de natureza totalitária e com muita pouca ou nenhuma cultura democrática. Partidos genuinamente iliberais, que não se inibem de apoiar ditadores, incluindo Putin, e que, mesmo quando tentam vestir a pele de cordeiro, não conseguem disfarçar um estrutural anti-ocidentalismo primário.

As linhas vermelhas que foram sendo exigidas à direita moderada e que esta, e bem, entendeu assumir, não podem deixar de ser exigidas à esquerda moderada, sob risco de estarmos a executar um exercício de hipocrisia política e a assumir uma postura coletiva lesa-democracia.