Fui assistir às filmagens que estão a decorrer para “Glória”, a primeira série original da Netflix realizada em Portugal e uma co-produção RTP, claro. Uma história bem portuguesa, filmada entre o Ribatejo e Lisboa, girando à volta de operações secretas durante a guerra fria, com o antigo regime como pano de fundo, envolvendo a CIA e abrindo caminho para as mudanças que estavam a despertar na sociedade. É uma produção de grande nível, cuidada, com bom casting, bom guião, boa fotografia, e é sobretudo mais um passo para a internacionalização desta indústria.
Fiquei a pensar na forte evolução que tem havido na produção de ficção e no papel de charneira que a RTP aqui tem desempenhado, através de uma ação estruturada. Uma política ativa que partiu de uma base bastante indiferenciada e totalmente doméstica, para a afirmação de uma prática recorrente de co-produções internacionais, de apostas em formatos e temas diversificados e apelativos, de acompanhamento das tendências mundiais, de incentivo às indústrias criativas e à produção independente, de associação aos distribuidores globais para realizar projetos de grande escala, projetando o imaginário português além fronteiras.
Nos últimos anos procurámos de facto que a RTP tivesse uma atuação consistente e ambiciosa na área da ficção, um pilar estrutural da nossa oferta. E temos a noção que o comportamento do operador público é relevante não apenas para conseguir produtos de qualidade para antena, mas também para desenvolver o setor audiovisual. A estratégia que pensámos e implementámos assenta em quatro componentes essenciais: diferenciação, recorrência, mobilização interna e ambição internacional.
Em primeiro lugar, a opção pela diferenciação. Escolhemos não fazer o que os outros fazem (telenovelas) e fazer o que os outros não fazem (séries de qualidade, com ambição internacional). Esta foi a pedra de toque da política de conteúdos e este é o posicionamento que acrescenta valor ao panorama nacional, logo é o caminho que faz sentido para a RTP. As empresas públicas só se justificam se adotarem estratégias que contribuam com algo que o mercado não cobre mas que o cidadão valoriza, e só são defensáveis se o fizerem num registo de sustentabilidade e competitividade. Tudo isto está presente nos caminhos seguidos pela RTP nos últimos anos.
Em segundo lugar, transmitimos ao setor uma nota de recorrência, de aposta continuada, de previsibilidade. Este ponto é fundamental nas indústrias criativas e culturais, infelizmente tão habituadas ao crónico stop and go, aos avanços em tempos de vacas gordas e recuos em fases de restrições. Ao colocarmos de forma estrutural a produção de ficção nacional no centro da nossa estratégia e ao dotarmos esta área dos orçamentos adequados – mantendo sempre o equilíbrio económico da empresa – quisemos assumir um compromisso e emitir um sinal inequívoco a todos os agentes do setor, tanto a nível interno como junto de players internacionais, deixando bem claro que se trata de uma estratégia de médio prazo. E esta perenidade é um elemento essencial para garantir um fluxo rico de projetos e para assegurar um leque de produções de qualidade numa base plurianual. Mesmo no contexto da pandemia, fizemos questão de reforçar as encomendas aos produtores independentes, marcando com clareza o papel de suporte que entendemos como nosso.
Em terceiro lugar, temos procurado desempenhar um papel de mobilização do setor audiovisual, fomentando a sua atividade, dialogando com as associações, tentando perceber os seus sonhos, tentando resolver os seus obstáculos, estabelecendo pontes com os produtores independentes, servindo assim de suporte a todo um conjunto de entidades que merecem ser estimuladas e que crescem quando existem perspectivas. Um dos exemplos desta postura tem sido a organização de consultas abertas de conteúdos, todos os anos, dando oportunidades aos múltiplos agentes do mercado – qualquer que seja a sua dimensão e experiência acumulada – para apresentarem as suas ideias e propostas concretas, que são analisadas com critério. Esta abertura e diálogo permanente com o setor é um fator acelerador para toda uma fileira de produtores, realizadores, atores e guionistas, criando um ambiente propício à inovação, à experimentação e à concretização de novos conteúdos ganhadores.
Em quarto lugar, assumimos logo à cabeça a ambição de internacionalização. Nesse sentido, começámos por fazer co-produções a nível ibérico, investimos na participação em festivais internacionais e na divulgação focada junto dos agentes decisivos, desenvolvemos relações com distribuidores presentes em várias geografias, aproveitámos todas as oportunidades para realizar parcerias com os gigantes do setor a nível global, como a Amazon, HBO, Netflix, entre outros. O facto de os projetos atuais de ficção da RTP terem, logo desde o início, desde a fase de concepção, a perspectiva de virem a ser lançados nos mercados globais traz um nível de empenho e exigência muito distinto das tradicionais produções que tinham apenas o horizonte nacional. Por outro lado, a realização consistente de co-produções internacionais e a associação a parceiros de grande calibre permite aumentar significativamente o ticket dos projetos, que passam a dispor de orçamentos robustos, assegurando a entrada num universo radicalmente distinto. É aí que estamos e será aí que a RTP seguramente continuará a estar.
E este upgrade na qualidade das produções em curso aplica-se não só às séries de ficção, mas a outros formatos que temos desenvolvido, como esse género nobre do audiovisual, os documentários. Apostar em documentários, como a RTP tem vindo a fazer, é valorizar o conhecimento, a informação, a divulgação da cultura, das artes, do património, da ciência. Estes são os propósitos mais elevados que um operador de media pode ter. Por isso mesmo o nosso empenho neste domínio também é muitíssimo forte, aliás a RTP produz e emite mais de 90% dos documentários realizados em Portugal, ou seja, não haveria indústria de documentários sem o serviço público. E também aqui trabalhamos numa lógica de parcerias e ambição maior, como demonstram os projetos que temos vindo a realizar em colaboração com instituições vocacionadas para o conhecimento, como a Gulbenkian, a Fundação Francisco Manuel dos Santos, a Fundação Oceano Azul, entre outras entidades.
É evidente que a indústria dos conteúdos é uma atividade de risco, de apostas, de sucessos e falhanços. Há produções que resultam e outras que não têm êxito. Há séries que são bem acolhidas pelo público, há outras que recolhem o agrado da crítica e há as que não vingam nem numa nem noutra dimensão. Nunca faremos o pleno. Tudo isso faz parte da atividade televisiva. Temos de continuar a produzir, acertando por vezes, errando outras, afinando aqui e acolá, tentando sempre melhorar. Nas últimas temporadas, a RTP apresentou séries de época, séries sofisticadas, séries com boas tramas, séries com uma linguagem distinta, como “Três mulheres”, “Sul”, “Auga Seca”, “Espia”, entre muitas outras, produções que alcançaram reconhecimento internacional e que terão continuidade. O ponto fundamental é que haja uma visão de médio prazo, uma prática consistente, uma intenção recorrente de subir o nível, a vontade de aceder a mercados mais vastos. E depois temos de estar preparados para o êxito ou a derrota de cada aposta isolada. Ambiciosos na estratégia, humildes perante o impacto de cada produto. Como escreveu Samuel Beckett: “Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better”.