O leitor encontrará pouca originalidade no título. E tem razão. Inspira-se nas movimentações do exército de libertação popular chinês, liderado por Mao Tse-Tung, para explicar o recente “Estado Islâmico” no Iraque e Síria. Naturalmente que as pretensões ou contexto não são iguais. Além de que Abu Bakr al-Baghdadi não é Mao. Mas a futilidade deste exercício esvai-se na dinâmica subversiva dos dois movimentos, que, de grupos marginais mais ou menos organizados, passam a Estados apoiados pela população.
Expliquemos. Pelo menos desde o final da guerra contra os soviéticos no Afeganistão que a criação de um Estado pauta as pretensões jihadistas. Sob o signo da al-Qaeda houve duas tentativas que quase se efectivaram: no Afeganistão, com a colaboração do regime Taliban, e no Norte do Mali, com a colaboração dos tuaregues. O primeiro foi impossibilitado em 2002 pela coligação internacional liderada pelos EUA, o segundo pela intervenção francesa em 2013. Entre uma e outra foi-se acalentando também no Iraque a possibilidade de um Estado.
O know-how organizacional do actual “Estado Islâmico” remonta ao grupo al-Tawhid wa’l-Jihad (“Unicidade de Deus e Jihad”), fundado em 1999 pelo famigerado al-Zarqawi. Este grupo emerge em 2004 como o ramo da al-Qaeda no Iraque (AQI), tornando a região o palco par excellence da jihad, como o leitor se deverá lembrar. Porém, o excesso de violência sectária fez tremer esta relação filial. Ainda assim, numa carta datada de 2005, o actual líder de al-Qaeda, al-Zawahiri, traça claramente os objectivos da AQI: depois da expulsão dos norte-americanos, há que “estabelecer uma autoridade islâmica ou um emirato, depois desenvolvê-lo e apoiá-lo até que atinja o nível de um califado sobre o máximo território onde possa espalhar o seu poder no Iraque”. Em Junho de 2006 al-Zarqawi morre. Quatro meses depois, a AQI tenta constituir um Estado e adopta o nome de “Estado Islâmico do Iraque”, procurando preencher o vazio de poder gerado pela eventual retirada das tropas norte-americanas.
Porém, em Janeiro de 2007, o então Presidente Bush anuncia o destacamento de mais vinte mil soldados para o Iraque até Junho desse ano. Era o Iraq Surge, que estava sob o comando e coordenação do General David Peatreus. E, à semelhança das tropas revolucionárias de Mao, também as forças jihadistas foram rechaçadas. Tal como os nacionalistas de Chiank Kai-Check cercaram os comunistas chineses, também as tropas iraquianas e norte-americanas impediram um crescendo da jihad naquela região. Mas foi sol de pouca dura. Acossados, os jihadistas iniciaram uma longa marcha de retirada, reagrupando-se a noroeste do Iraque junto à fronteira Síria.
A partir de 2011 o contexto foi-lhes favorável com a retirada das tropas norte-americanas do Iraque, o caos provocado pela guerra civil síria e a aparente inoperância/corrupção do governo de Nour al-Mailiki, apoiado pelo Irão xiita. Passar de uma organização grupal em marcha para um Estado, ainda que atípico, era de novo possível.
Pouco depois do início do conflito sírio, já havia movimentações de jihadistas iraquianos naquele país. Associam-se de início à frente al-Nusra, braço da al-Qaeda na Síria, crescendo exponencialmente. Em Abril de 2013, proclamam o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” e tentam assimilar o referido grupo sírio. Daqui nasce uma ruptura com al-Qaeda, que os leva a agir como grupo independente e de uma forma hostil a outros movimentos jihadistas.
Assim, capitalizando a tensão entre a minoria sunita e o governo xiita de Maliki, o grupo liderado por al-Baghdadi desencadeia um autêntico blitzkrieg, controlando em menos de três meses o noroeste do Iraque. Em Junho mudam o nome para “Estado Islâmico”, assumindo assim as pretensões expansionistas apontadas já em 2005 por al- Zawahiri.
Regressando à analogia inicial podemos ver que, à semelhança das tropas do Partido Comunista Chinês na década de 30, também nos últimos anos diferentes forças jihadistas sunitas se perfilam na perspectiva de um Estado territorial que projecte a sua revolução. Reconhecidos na brutalidade, financiados por árabes e com acesso a armamento, hoje o “Estado Islâmico” representa um poder político-militar que vai desestabilizar ainda mais o Médio-Oriente. Ironicamente, da mesma forma que o PC Chinês se foi afastando do modelo soviético, também estes jihadistas em expansão se apartaram da mãe al-Qaeda, e com um resultado bastante eficaz, diga-se.
Professor universitário; porta-voz do OSCOT