«A Guerra é sempre uma derrota, apenas uma derrota» (Papa Francisco, 08/09/2023)

Diante de mais uma tragédia humanitária – para além da guerra entre a Rússia agressora e a Ucrânia agredida, cujo tempo da sua duração e violência é já incompreensível e assustadora, unicamente provocada cobardemente pelo ser humano, sedento de sangue e ardendo em cólera e ódio, acordámos, todos, para mais uma guerra no mundo em que vivemos, cada vez mais inseguro e incerto, no sábado, dia 7, quando o movimento terrorista palestino do Hamas – que não representa a Palestina no seu todo – disparou milhares de rockets a partir da Faixa de Gaza, visando Israel. Vários militantes do Hamas infiltraram-se em comunidades judaicas, perto da fronteira com Gaza, matando e capturando civis e soldados.

Falamos de um ataque terrorista bárbaro e sangrento, entre dois países vizinhos, que nunca se darão bem, infelizmente, mas de geração em geração alimentam ódio um pelo outro, sobretudo pelos traumas, perdas, barbáries que vários indivíduos de ambos os lados passaram e, por conseguinte, clamam sempre por vingança – pois é inculcado este ódio a cada geração –, nunca quebrando o ciclo de guerra. Afirmar, também, que o cerco total a Gaza, por parte de Israel, é também inaceitável, não obstante terem sido agredidos. É a espiral de violência sempre a crescer…sempre, sempre…

Como afirmou Hild Hist, poetisa brasileira, quando interrogada sobre o que é obsceno (para nós seria facílimo identificá-lo, como sendo dos pecados mais graves), ela – que de imediato entenderíamos por obsceno a luxúria, que efetivamente é pecado – perentoriamente afirma ser muito mais «a miséria, a fome, a crueldade: a nossa sociedade é obscena». Com isto, quero introduzir uma reflexão que nos leve a pensar além do óbvio e de uma forma de relação humana, a partir do amor de Cristo, que é Amor e o modo como nos relacionamos com o próximo, amando o Amor, que é Jesus Cristo.

Muitas das vezes, como padre, oiço muitas pessoas – que são boa gente, efetivamente – afirmar que “eu não mato, não roubo, não prejudico ninguém” e, em tom de confissão, ficamos assim, como se isso bastasse! E amar o Amor?

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Posto isto, Jesus quando inquirido pelo ardiloso fariseu sobre qual era o maior mandamento da Lei de Deus (os judeus tinham centenas de leis que foram acrescentando, ao longo do tempo ao decálogo, que já nem bem sabiam qual a mais importante…) [(cf. Mt 22, 36)], a resposta de Jesus foi a seguinte: «Amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, toda a tua alma e todo o teu entendimento», numa clara referência à Shemá Israel («Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Ama o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e de todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5), não sem antes de proclamar o segundo mandamento, não questionado pelo fariseu, mas que ficaria incompleto pois este único mandamento não é senão uma única moeda, e como tal, com duas faces, sendo una: «Amarás ao teu próximo como a ti mesmo» (Mt 22, 39).

Deste modo, a segunda parte da resposta de Jesus é considerada como sendo uma paráfrase do mais antigo texto moral, conhecido como Regra de Ouro (cf. 1300 a.C.): A negativa ou confuciana é: “Nunca faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem a ti” e a positiva ou cristã é: “Faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem” a ti, que, mais tarde, seria atribuída a Jesus Cristo erradamente – falo da regra de ouro –, como originalmente sua, embora o próprio Jesus a cite para sumarizar a lição da Bíblia judaica: pois é «o resumo da Lei de Moisés e dos ensinamentos dos profetas» (cf. Mt 22, 35-40).

Assim sendo, a originalidade que Jesus traz – e, essa, é exclusivamente sua –, é quando Jesus pede aos seus discípulos que amem o seu semelhante como Ele nos amou: «Eu dou-vos um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (Jo 13, 34). Amor, esse, capaz de se materializar em perdão, quando na cruz perdoa a quem o assassina, dizendo: «Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34), ensinado, assim, pelo exemplo, que a grande novidade e originalidade trazida por Jesus é aprender d’Ele, que é manso e humilde coração (cf. Mt 11, 29), a perdoar os inimigos (cf. Mt 6,14-15)!

Pois, de contrário, qual seria a grande novidade se fizéssemos o que todos fazem? «Se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? Também os pecadores amam aos que os amam. E, se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo. E, se emprestardes àqueles de quem esperais tornar a receber, que recompensa tereis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para tornarem a receber outro tanto. Amai, pois, a vossos inimigos, e fazei o bem, e emprestai, sem nada esperardes, e será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo; porque Ele é benigno até para com os ingratos e maus» (Lc 6, 32-35).

Também numa outra passagem, Jesus diz-nos como quebrar a espiral de violência e retaliação quando nos pede que sejamos capazes de dar a outra face (cf. Lc 22, 29). Com isto, Jesus não quer dizer que simplesmente fiquemos quietos a “apanhar porrada”, mas, com o exercício do perdão, que só é possível alicerçado num Deus Amor, é capaz de perdoar, e com isso, quebrar o ciclo de retaliação, vingança, morte, atrocidades, inimizades, ódio, raiva, guerra…

Sem querer mudar de assunto, mas encerrando o assunto desta reflexão, faço minhas as palavras de Dante Alighieri, da sua magistral obra “Divina Comédia” (século XIV) aludindo ao nascimento de Francisco de Assis, no final de 1181 ou início de 1182, afirmando: «Nasceu para o mundo um sol».

Com estas palavras, na “Divina Comédia” (Paraíso, Canto XI), retrata a vida real de Francisco de Assis, o qual pertencia a uma família rica – seu pai era comerciante de tecidos –, transcorreu uma adolescência e uma juventude despreocupadas, cultivando os ideais de cavalaria da época. Aos 20 anos, fez parte de uma campanha militar e foi preso. Ficou doente e foi libertado. Após o seu retorno a Assis, começou nele um lento processo de conversão espiritual que o levou a abandonar gradualmente o estilo de vida mundano que havia levado até então.

A este período correspondem os célebres episódios do encontro com o leproso, a quem Francisco, descendo do cavalo, deu o beijo da paz, e da mensagem do Crucificado na pequena igreja de São Damião, na qual por três ocasiões Cristo na cruz adquiriu vida e disse-lhe: «Vai, Francisco, e repara minha Igreja, que está em ruínas». Não se referia à igreja de Damião, mas à Igreja Católica do seu tempo!

Volvidos quase um milénio, o Papa Francisco (a escolha do seu nome papal diz tudo), a 4 de outubro (dia litúrgico de São Francisco de Assis), na Sala Paulo VI, no Vaticano, teve início a primeira Congregação Geral da 16ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, com a presença do Papa, que de forma espontânea discursou aos participantes, afirmando claramente que se «o Espírito Santo estiver no comando, será um bom sínodo, e se Ele não estiver, não será».

Rezemos muito pelo êxito espiritual desta Igreja sinodal e samaritana, que vai ao encontro das periferias e não deixando de ser fiel à Revelação e Tradição. Saiba reformar-se para, assim, reformar o mundo, para que Ame o Amor e só, assim, saberá transmitir ao ser humano o exercício de amar como Jesus amou, na mais elevação espiritual de um amor oblativo e não abusador ou utilitarista, capaz de nos transformar por dentro e às nossas relações interpessoais, a começar por casa, no trabalho, na escola, na sociedade e no mundo inteiro.

Como podemos ser capazes de amar o nosso semelhante, na radicalidade original de Cristo, senão amamos o Amor, que é Deus (ágape) [cf. 1 Jo 4, 8)]? O nosso discurso não pode começar por “não mato, nem roubo”, mas sim, Deus é o meu primeiro grande amor? Amo-o com todo o meu coração, inteligência e entendimento? Não é este o primeiro mandamento do decálogo? Como queremos inverter a ordem, que não é de toda arbitrária, dos dez mandamentos? Não estaremos a intentar criar sociedades sem Deus (pecado original) e pessoas que não procurem cultivar a interioridade e espiritualidade?

Em suma, enquanto não entendermos que sem o Amor primeiro a Deus, por mais paradoxal que possa parecer, se não Ele não for o nosso primeiro grande amor, Ele que nos amou primeiro, ao ponto de São João chamar mentiroso – é uma palavra forte –, a quem diz que ama a Deus que não vê, e não ama ao seu irmão que vê (cf. 1 Jo 4, 19-21), nunca amaremos o nosso semelhante, com o amor próprio de Deus, o que conduzirá sempre a discórdias, violências, guerras, abusos, de todo o tipo, em todas as épocas e tempos, desde as relações mais basilares, como a família (que a sociedade não cuida e quer pôr em causa, na sua ordem natural), até ao seu expoente máximo, em conflitos bélicos entre nações.

Enquanto não nos deixarmos permear pela graça e o amor perfeito, pleno, belo, oblativo de Deus em nossos corações, nunca saberemos amar o nosso semelhante, deste modo perfeito, como já no Céu, mas amaremos sempre de modo imperfeito, apenas de amor humano, sem o divino, conduzindo, inevitavelmente, muitas das vezes, mas não sempre, ao esmorecer do amor entre marido e mulher, pais e filhos, empregador e empregado, nação e nação… Urge Amar o Amor!

Cito apenas, abaixo, o poema de São Francisco de Assis, que dá nome ao título desta reflexão, não deixando de pedir, na oração – num dos mais doces gestos que podemos oferecer a Deus, pois é amá-lo –, pelo bom êxito do sínodo eclesial presente, para que uma Igreja verdadeiramente reformada, possa reformar o mundo!

«O camponês perguntou:
Que aconteceu,
irmão, por que estás chorando?
O Irmão respondeu:
Meu irmão,
o meu Senhor está na Cruz
e me perguntas por que choras?

Quisera ser neste momento
o maior oceano da terra,
para ter tudo isso de lágrimas.

Quisera que se abrissem
ao mesmo tempo todas
as comportas do mundo
e se soltassem
as cataratas
e os dilúvios
para me emprestarem
mais lágrimas.

Mas ainda que juntemos
todos os rios e mares,
não haverá lágrimas
suficientes para chorar
a dor e o amor
de meu Senhor crucificado.

Quisera ter as asas invencíveis
de uma águia para atravessar
as cordilheiras e gritar
sobre as cidades:

O Amor não é amado!
O Amor não é amado!

Como é que os homens podem amar
uns aos outros se não amam o Amor?»

(São Francisco de Assis)