“Portugal surge na terceira posição, no total de 45 países, relativamente ao indicador «número total de médicos per capita» da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Existem, atualmente, cinco médicos por cada mil habitantes, o que coloca Portugal à frente de países como Alemanha, França e Reino Unido.”
A retórica de que existe um défice de médicos em Portugal é apregoada há décadas. Se assim é, de facto, o que significa afinal estar na terceira posição do «número total de médicos per capita» da OCDE, à frente de países como a Alemanha (com um dos sistemas de saúde reconhecidamente mais robustos e eficientes do mundo)?
O Sistema Nacional de Saúde (SNS) português apresenta diversas necessidades, que seguramente não se esgotam no número de profissionais. Mesmo com dificuldades, sobretudo por mérito e dedicação dos seus trabalhadores, o SNS consegue (em qualidade humana, competência técnica e formação) estar a par dos melhores sistemas de saúde do mundo. No entanto, penso que deverá ser sempre um desígnio procurar tornar a sua resposta mais eficiente, no âmbito das necessidades que a evolução dos tempos imponha, valorizando de forma justa aqueles que são o SNS: os seus profissionais. Desta forma, simplesmente adicionar, de forma avulsa, mão-de-obra a um sistema com deficiências estruturais e organizacionais, embora possa suprir carências pontuais assistenciais em determinadas especialidades e zonas geográficas, parece-me insuficiente para melhorá-lo. Acresce que algumas das “poeiras na engrenagem” estão muito para além de questões exclusivamente ligadas à Saúde.
Assim, procurando contribuir para uma reflexão profícua, enumero e abordo de seguida algumas das necessidades estruturais que me parecem essenciais para reorganizar o sistema e torná-lo mais eficiente.
1 Literacia em saúde
Este é um dos problemas de base, estrutural, na Saúde (mas não só): a escassa literacia dos cidadãos para a saúde, que tem, desde logo, duas consequências major nefastas: a) o recurso exagerado ao sistema, e em particular a cuidados diferenciados, sem justificação clínica; b) a não adopção de modos de vida saudáveis, preventivos de diversas doenças (das quais se destacam as cardiovasculares) que representam uma grande fatia dos gastos evitáveis em saúde. Para combater esta iliteracia seria necessário investir em programas informativos, com enfoque no estímulo à adopção de comportamentos preventivos de doença e na informação acerca de como usar convenientemente os serviços de Saúde perante as mais diversas situações clínicas.
2 Assimetrias geográficas na distribuição de recursos humanos
É sobejamente conhecido que o “interior” do País se debate cronicamente com a dificuldade em atrair profissionais de saúde das mais diversas especialidades. Uma das soluções que frequentemente é apresentada para este problema são os incentivos remuneratórios. Ora, esta ideia parece-me muito redutora quando falamos em tentar fixar famílias numa região.
Em primeiro lugar, num país com uma distância de Oeste a Este de cerca de 200 quilómetros, falar de “interior” é quase anedótico. Este é, pois, um conceito estigmatizante oriundo, sobretudo, da desertificação resultante da falta de investimento nessas regiões. Para que as pessoas desejem fixar-se nesses locais seria preciso desenvolvê-los social e economicamente, ao nível das áreas litorais, com as mais diversas infraestruturas, empresas e serviços, dotando-os do mesmo tipo de oportunidades existentes nas zonas mais desenvolvidas. O investimento poderia, e deveria, ser feito, tendo em conta as idiossincrasias de cada região, de forma a preservar a sua identidade. Mas, sem o concretizar, de facto, as lacunas crónicas de profissionais nunca serão debeladas.
Em segundo lugar, os profissionais de Saúde não precisam de “incentivos” salariais, mas de remunerações base justas e dignas, compatíveis com o seu grau de diferenciação e responsabilidade profissionais, seja em regime de acumulação de funções ou em regime de exclusividade.
3 Carreiras profissionais e assimetrias salariais
Seria imperativo acabar com as assimetrias salariais entre profissionais de saúde com as mesmas competências técnicas, criando uma tabela remuneratória única e independente do local de trabalho (hospital, centro de saúde ou unidade de saúde familiar), com salários que reflitam a diferenciação e responsabilidade dos profissionais.
Centrando-me nos médicos, realidade que melhor conheço, não me parece que existam muitas dúvidas de que serão dos (ou os) profissionais mais diferenciados da Administração Pública. Um médico especialista tem uma formação pré e pós-graduada rigorosas, que incluem seis anos de licenciatura e cinco, seis ou sete anos de internato. Este último, é um percurso exigente onde, para além do trabalho realizado no âmbito assistencial (que muito contribui para a viabilidade e eficiência do SNS), os médicos são sujeitos a avaliações teórico-práticas periódicas e realizam, às suas expensas, as mais variadas formações pós-graduadas complementares (pós-graduações, cursos, mestrados, doutoramentos e/ou estágios profissionais) e actividades de âmbito científico (publicações, comunicações em reuniões científicas nacionais e internacionais, etc…) e de docência.
Assim, parece-me que seria da mais elementar justiça, os médicos terem um estatuto remuneratório congruente com a sua elevada diferenciação académico-profissional e uma progressão na carreira justa e consequente.
Relativamente às carreiras médicas, a ironia é grande. Como em muitas outras áreas, a distância entre o discurso da tutela e a prática é enorme. Actualmente, nem todos os médicos que concluam a avaliação determinada nos concursos para progressão na carreira progridem efectivamente. Por exemplo, o Aviso n.º 10047/2017, publicado no D.R., n.º 168, II Série, de 31 de agosto de 2017, determinou a abertura de um concurso para realização de provas para consultor com número de vagas limitado para os que concluam com sucesso as avaliações preconizadas (e, acrescente-se, que três anos depois, este concurso ainda não foi realizado e apenas em Março de 2019 os candidatos foram notificados da sua admissão no mesmo). Esta situação é deveras perversa e desmotivadora, sobretudo quando é afirmado sem pudor que os médicos são devidamente valorizados. Porém, vários outros exemplos rápida e facilmente contrariam esta oratória: Divulgado vídeo em que António Costa chama médicos de “cobardes”; António Costa considera que a Champions “é um prémio para os profissionais de saúde“; Profissionais de saúde impedidos de sair do SNS durante estado de emergência; Governo promove administradores e indigna profissionais de Saúde; Prémio aos profissionais de saúde é “uma ilusão desonesta“; “Não, senhora ministra, não devemos nada ao SNS“.
Existem também algumas imparidades entre os médicos funcionários públicos e aqueles em contrato individual de trabalho sem termo (CITst) relativamente a alguns direitos, como, por exemplo, a ADSE (os funcionários públicos têm e os CITst não).
Por tudo isto, parece-me justo que: (1) todos os médicos que concluam com sucesso as provas determinadas pelos concursos progridam efectivamente na carreira; (2) se elabore uma tabela salarial única, sem complexos, congruente com a alta diferenciação académico-profissional dos médicos, atraindo-os para se dedicarem em regime de exclusividade ao SNS; (3) os direitos dos médicos que trabalham no SNS, independentemente do vínculo laboral (funcionário público ou CITst), sejam similares.
Os médicos, e os profissionais de saúde em geral, não precisam de palmas. Precisam, sim, de adequadas condições de trabalho e justa valorização.
4 Sub-orçamentação do SNS
A sub-orçamentação do SNS é um problema crónico e bem conhecido que necessita de ser progressivamente corrigido em paralelo com a potenciação da sua estrutura e organização (tornando-o mais eficiente e acessível), com a alocação ponderada e adequada dos recursos financeiros nacionais e com políticas de desenvolvimento económico sustentáveis e produtoras de riqueza.
5 Sistema muito centrado no hospital e no médico
Todo o sistema continua, ainda, a privilegiar os cuidados hospitalares em relação aos comunitários e, em ambos, o foco mantém-se muito centrado no médico. O trabalho multidisciplinar, facilitando e aliviando o trabalho do médico e oferecendo uma abordagem holística do doente (clínica, social e familiar) deveria ser mais incentivado e implementado.
6 O financiamento não deve ser exclusivamente baseado no número de actos clínicos mas considerar, também, outros factores, tais como:
- a prevalência e a natureza das doenças na área assistencial;
- a densidade populacional da área assistencial;
- as características demográficas (por exemplo, se é uma área muito envelhecida, exigirá certamente maior financiamento) da área assistencial.
7 Teleconsulta e reuniões inter-Institucionais/consultadoria à distância
Numa era em que existe tecnologia simples de usar e amplamente disponível para facilitar o contacto à distância, é incompreensível que o SNS não esteja dotado dessa capacidade (por exemplo, com computadores em todos os consultórios com possibilidade de realizar videochamadas e com acesso irrestrito a vários sites e plataformas úteis).
8 Estimular e facilitar as parcerias com as Universidades e Centros de Investigação e consagrar legalmente no horário dos profissionais a possibilidade de dedicarem um determinado número de horas à investigação e formação.
9 Legislar a criação de Estruturas de Saúde Mental, com regimes residenciais e ambulatórios, vocacionados para o cuidado e acolhimento dos doentes de todas as faixas etárias com patologia mental, nomeadamente, com apoio clínico especializado (neuropsiquiátrico) e actividades específicas e orientadas para o tratamento não farmacológico das doenças (estimulação cognitiva, exercício físico, psicoeducação aos utentes e familiares, treino de competências, actividades lúdicas, etc). Os regimes de organização e funcionamento que constam da legislação para Lares são insuficientes para dar a resposta adequada às necessidades de doentes com patologia mental (idosos e jovens).
10 O SNS deve, preferencialmente, funcionar de forma independente do sector privado, sem prejuízo de, sempre que se revele necessário, estabelecer parcerias que sirvam os interesses dos doentes. O SNS deve consolidar-se como um padrão de qualidade, estimulando a competitividade do Sector da Saúde e nivelando-a por cima.
11 A riqueza do país
Não sou economista, mas outra das óbvias e infelizmente crónicas diferenças de Portugal em relação a países como a Alemanha é a riqueza produzida.
Um país rico e próspero é menos vulnerável a crises sócio-económicas, tem mais poder de influência e exigência junto dos parceiros estratégicos internacionais e apresenta mais recursos para suprir as necessidades das mais diversas áreas, incluindo a Saúde. É deveras desolador ver Portugal ser ultrapassado em vários índices sócio-económicos (como, por exemplo, no rendimento per capita ou nas desigualdades sociais) por nações que aderiram mais tarde à União Europeia e/ou ao euro. Urge a pergunta: será o dogma da estatização da economia o adequado para Portugal se tornar, no contexto nacional e internacional, sócio-economicamente mais resiliente, competitivo e rico? Julgo que a resposta está bem explícita na realidade das últimas duas décadas. Com preconceitos ideológicos e sem mudanças culturais profundas nunca seremos capazes de ter os recursos suficientes para alcançar o nível de desenvolvimento desejado na Saúde e nos demais sectores de actividade. O investimento privado, em conjunto com uma intervenção adequada do Estado (na regulação das actividades sectoriais, no estímulo ao investimento e no combate às desigualdades sociais) é o motor de uma sociedade livre, meritocrática e solidária e de uma economia sustentável e próspera.
Assim, por tudo o que expus, há falta de médicos em Portugal? Talvez essa não seja, afinal, a questão ou o problema essencial.
Não estará, então, na altura de parar com as demais insistentes, demagógicas e nebulosas verbosidades (impeditivas da identificação e resolução dos reais problemas estruturais do país) e concentrarmo-nos naquilo que é verdadeiramente importante para melhorarmos a eficiência dos diversos sectores de actividade, como o SNS? Penso que o devemos à nossa descendência…