Tenho passado uns bons tempos a ver os Jogos Olímpicos na televisão. Como de costume, dou-me a entusiasmos com a alegria dos vencedores, por exemplo a de Patrícia Mamona – que é mesmo muito bonita – com a prata no triplo salto e a do italiano que ganhou ex aequo o ouro no salto em altura, Gianmarco Tamberi. Há naquelas jubilações uma reunião do corpo e do espírito num acto único, que é do mais belo que se pode ver e que é um dos meus prazeres nos Jogos Olímpicos. O corpo, levado ao limite pelo espírito, satisfaz este com uma plenitude que ele de outra maneira não conheceria. Essa plenitude chama-se felicidade.
Desde que me lembro de mim, sempre tive esta reacção, embora no princípio, é claro, menos consciente de si. A admiração aumenta com a idade e com a danada da nostalgia. Os únicos Jogos Olímpicos de que guardo má memória – embora fosse miúdo – foram os de Munique, em 1972. E a má memória não vem aí de recordações de vitórias ou derrotas, mas do atentado terrorista da OLP, que resultou na morte de onze atletas israelitas, um dos actos de relações públicas de que Yasser Arafat muito se orgulhava e que, secundariamente, revelou a extraordinária incompetência da polícia alemã, bem detalhada num minucioso documentário que sobre o acontecimento foi feito.
A coisa não incomodou muito os admiradores dessa horrenda e repugnante criatura que foi Arafat. De resto, o terrorismo – o terrorismo deles – não os costuma incomodar. A recente conversa, em Portugal, sobre a morte de Otelo mostra-o perfeitamente. O envolvimento dele nas FP 25 não horroriza o grosso da gente opinante, e não apenas aquela parte dela que, ideológica ou praticamente, estava delas próxima. O que Nuno Poças escreveu sobre o assunto no Observador (ainda não li o livro dele), bem como o testemunho de Manuel Castelo-Branco, filho de Gaspar Castelo-Branco, uma das vítimas das FP 25, também publicado no Observador, não agitou as plácidas consciências.
Há uma razão, que não se resume à mera indiferença, ao puro fanatismo ou a qualquer idiossincrasia nacional, para que assim seja. Passo por cima daquilo que autores célebres – Dostoievski, Conrad ou Chesterton – escreveram sobre o terrorismo e vou directamente à minha memória pessoal. Durante muito tempo, nos fins dos anos setenta, princípios de oitenta, do século passado, dei-me com vária gente cujo reflexo instintivo face ao terrorismo da OLP, do IRA, da ETA, das Brigadas Vermelhas e do grupo Baader-Meinhof era o de aprovação completa e imitigada. Não se contam as discussões que, na altura, tive sobre esse assunto. Mas eram as pessoas mais pacatas que se possa imaginar e que dificilmente se imaginaria a porem uma bombinha de Carnaval num formigueiro. No entanto, o apoio aos grupos terroristas era automático, bem como a admiração imoderada pelo camarada Otelo.
Porquê? Por pura tontice? Não. Alguns deles eram tudo menos tontos. Tenho outra explicação. Porque eram individualistas de esquerda de um certo tipo. O individualismo de esquerda possui uma curiosa característica: a de só conceber verdadeiramente o indivíduo como um ser alheio e oposto à sociedade, não como alguém que nela se encontra e nela se move (isso corresponderia a estar “instalado”). Para o individualista de esquerda deste tipo, o verdadeiro indivíduo é aquele que voluntariamente se exclui do todo social e que com ele se encontra em guerra. Não é um marginal, um outsider: está em guerra. A imagem é tão mais poderosa e magnificada quanto é incompatível, regra geral, com a vida real de quem a imagina. E é, além disso, um indivíduo que funciona num grupo, é um individualista grupal, porque a sua crença no que o torna um indivíduo depende inteiramente do seu reconhecimento por uma comunidade, suposta garantir a universalidade da aspiração individual.
Há, é claro, em tudo isto a herança de um certo romantismo e do heroísmo que ele promove, até no desprezo pela morte que revela: imaginário no caso da morte própria, real no caso da morte alheia. E visa-se o atingimento do sublime (palavra que Karlheinz Stockhausen usou para descrever os ataques de 11 de Setembro em Nova Iorque) ou da pura e simples beleza (ver o título da peça de teatro “Catarina ou a beleza de matar fascistas”). O individualista grupal de esquerda concebe-se como um anjo vingador que, ao arrepio de qualquer lei – não por contingência, mas por necessidade -, procura repor a justiça na sociedade. Ou, mais exactamente, oferece a sua compreensão gratuita aos anjos vingadores. São anjos, não é verdade? E a compreensão não custa nada, pois não? Custa assim tanto compreender o terrorismo islâmico, por exemplo? Que um muito real e efectivo ódio à democracia subjaza a tal “compreensão” não tem que incomodar excessivamente. Quem são os outros para falar de democracia? Não são exploradores, fascistas, reaccionários, serventuários do capitalismo, islamofóbicos.
O problema neste raciocínio é que a democracia se define mesmo pelo respeito pelos outros, sendo esses outros, entre outras coisas, numericamente identificados. E o problema, num outro plano, é o espectáculo da tristeza essencial que, por exemplo, os dionisíacos ditirambos a Otelo (e, pela calada, às FP 25) revelam. Parecendo que não, sob a cobertura de uma alegria festiva, eles manifestam uma tristeza profunda, que é o avesso exacto da felicidade dos atletas olímpicos de que falei no início. O gosto pelo terrorismo, a compreensão automática do gesto terrorista, vem daí, da infelicidade do pensamento que, por falta de recursos próprios, precisa de imaginar anjos vingadores que o libertem. Algo me diz que os indivíduos grupais são incapazes de admirar a alegria de Patrícia Mamona. Mas é verdade que a mente humana é tão complexa, mesmo nos casos ostensivamente mais simples, que não poria, sem mais, a mão no fogo por isso. Há sempre a possibilidade da inconsciência, que é, ainda por cima, fatalmente verosímil.