A descrição do que fez Luís Filipe Vieira para ultrapassar os seus problemas de dívida no Novo Banco abala as nossas emoções. Mas quando as escrutinamos, apenas nos casos que envolvem o Novo Banco, depois ler e ouvir várias partes, para nossa infelicidade, é difícil não encontrar uma racionalidade no que foi feito. Sim, podem ter sido imorais, mas num caso, o da reestruturação, minimizaram as perdas do Novo Banco e no outro, o da venda do crédito, reflectem um condicionalismo por vezes esquecido na recuperação de créditos e que impedem o melhor resultado: evitar a revolta da opinião pública e publicada.
O caso “Cartão Vermelho” divide-se em duas linhas de investigação.
Uma relacionada com a compra de jogadores, suspeitando a acusação que Luís Filipe Vieira terá ficado com parte do dinheiro desses pagamentos feitos pelo Benfica, num intrincado labirinto de transferências, usando offshores. Em suma, terá alegadamente roubado o Benfica.
A segunda linha de investigação envolve a relação de devedor de Luís Filipe Vieira e da sua empresa com o Novo Banco. Em causa está a já famosa dívida da Imosteps, que Vieira disse na Comissão Parlamentar de Inquérito ter ido parar às suas mãos a pedido de Ricardo Salgado, um favor que lhe fazia para limpar o balanço da Opway, empresa do universo Grupo Espírito Santo. (Não é o único devedor do Novo Banco a argumentar com favores a Ricardo Salgado).
Olhemos apenas para esta linha específica da investigação. A Imosteps tinha uma dívida de 54,3 milhões de euros ao Novo Banco, suspeitando a acusação que parte desses montantes foram canalizados para outros objectivos. Além disso, essa empresa era maioritária na OATA onde o Novo Banco tinha também uma participação de 12,5% do capital.
As informações que têm sido divulgadas vão no sentido de desvalorizar os activos que a Imosteps tinha: cemitérios e direitos de construção no Brasil. O que contraria a convicção da acusação. O Novo Banco tinha ainda, com esta dívida, um aval pessoal de Luís Filipe Vieira que na sua avaliação valia quase nada.
O presidente do Benfica, agora suspenso nas suas funções, tentou comprar essa dívida directamente e ter-lhe-á sido dito, pelo administrador responsável pela recuperação de créditos, que o Fundo de Resolução nunca o permitiria. Vítor Fernandes, entretanto escolhido para o Banco de Fomento, tem sido acusado de lhe ter dado acesso a informação privilegiada, não se percebendo bem qual. Porque se se resume a dizer-lhe “nem pense nisso, que o Fundo de Resolução não deixa”, é pouco.
Naquela altura, esta dívida estava integrada no conjunto de activos problemáticos que não foram assumidos pela Lone Star e, por isso, as suas perdas seriam compensadas pelo mecanismo de capital contingente, tendo, por isso, de passar pelo crivo do Fundo de Resolução.
Surgem então dois interessados em comprar essa dívida, o fundo Iberis e o grupo AFA da Madeira. O Iberis propôs-se comprar a dívida por 6,9 milhões de euros, mais 2,8 milhões pela participação de 12,5% que o Novo Banco detinha na OATA, o que perfaz 9,7 milhões de euros. O Ministério Público está convencido que estas duas propostas foram orientadas por Luís Filipe Vieira. Seja como for, nada aconteceu porque o Fundo de Resolução não autorizou a venda, também por considerar que existiam indícios de que os interessados tinham ligações a Vieira.
Face a isso, o Novo Banco avança com o que também já tinha preparado: integra esse crédito no conjunto de outros que fizeram parte do pacote Nata 2 e que é comprado pela DK (Davidson Kempner). E a dívida de 54,3 milhões de euros acaba por ser comprada por cerca de 4 milhões de euros, tendo como referência os números fornecidos por Luís Filipe Vieira na comissão parlamentar de inquérito.
É então que surge uma proposta, agora feita à DK, para comprar essa dívida de Luís Filipe Vieira que tinha transitado com os seus avales pessoais – o que o preocupava, recordando que disse na Comissão parlamentar de inquérito que este tipo de fundos “até nos tiram o calçado”. É então que José António Santos do grupo Valouro compra a dívida à DK por 8 milhões de euros, ainda os números de Luís Filipe Vieira que não coincidem com os da investigação preliminar. E assim se liberta Vieira dos seus avales pessoais.
Muito provavelmente o Novo Banco poderia ter ganho mais dinheiro se tivesse vendido directamente o crédito aos que primeiro o quiseram comprar. É óbvio que isso teria gerado grande comoção, quando se viesse a descobrir que os proponentes estavam a actuar por conta do devedor. Para evitar essa revolta, o dinheiro que poderia ficar no Novo Banco acabou por ficar no fundo americano DK.
Luís Filipe Vieira conseguiu comprar aos americanos que lhe poderiam “tirar até o calçado” aquilo que o preocupava, os avales pessoais, com a ajuda do seu amigo multimilionário. Quem sai prejudicado é sem dúvida o Fundo de Resolução e, com ele, todos nós contribuintes. Não sendo nós penalistas, é difícil perceber como é que um negócio entre privados, podendo ser imoral, é, neste caso, um crime.
Sem qualquer referência na investigação está o processo de reestruturação da dívida que envolveu a criação do Fundo de Investimento Alternativo Especializado (FIAE) onde está a dívida da Promovalor de 133,9 milhões de euros mais 12,2 milhões de euros de liquidez, somando 146,1 milhões de euros. Esse valor é representado por um conjunto de terrenos e imóveis, em Portugal, Espanha, Brasil e Moçambique com reforço de garantias dos activos situados nestes últimos dois países. Luís Filipe Vieira terá entregue 4,5 milhões dos 12,2 milhões de euros e um aval pessoal. E o Novo Banco detém 95,89% desse fundo.
Os resultados preliminares da avaliação da BDO a essa reestruturação concluem que essa foi a melhor opção. Levando em conta que o Fundo de Resolução disse que também o negócio da Imosteps estava a ser avaliado, aguarda-se a divulgação de toda a auditoria para perceber se vai ao encontro do que considera a acusação.
Resumindo: Luís Filipe Vieira com a ajuda do seu amigo José António Santos — que está entre os empresários mais ricos do país — conseguiu contornar, com milhões, a impossibilidade de comprar a sua dívida. Sim, é revoltante. No meio disto tudo quem fez o melhor negócio foi a DK. Mas todos estes grandes devedores continuarão a conseguir escapar sempre que tiverem dinheiro, contactos e uma legislação que lhes permita esconder os bens dos bancos que os querem executar.
Com todos os condicionalismos que existem é muito difícil que alguma vez alguma auditora venha dizer que não se está perante a melhor solução entre as que eram possíveis, considerando inclusivamente a aprovação pública. O Novo Banco dirá sempre que pelo menos recebeu algum dinheiro – ou receberá –, porque a alternativa era não receber nada.
Se retirarmos o caso da compra de jogadores, o que se sabe sobre o que Vieira fez para se libertar da sua dívida levanta muitas dúvidas. Citando o seu advogado, com todas as cautelas que temos de ter porque está a defender Vieira, “se querem comentar os factos relativos a este processo têm de ler com todo o cuidado a indiciação do MP. E perguntarem em relação a cada bloco de factos: isto é crime ou não?” O Ministério Público considerou que sim e o juiz Carlos Alexandre também. Vamos aguardar. Na certeza que imoral, isso foi.