Corria o ano de 1971 quando John Lennon produziu Imagine. Na canção, Lennon fala de um mundo sem países, sem religiões e sem ganância. Um mundo sem razões para morrer ou matar. Uma verdadeira irmandade de homens e mulheres, vivendo a vida em paz.

Nesse tempo, o mundo deixara para trás duas guerras mundiais, mas vivia em plena Guerra Fria. Os EUA travavam uma guerra no Vietname. A Europa tinha um muro em Berlim. O Apartheid persistia na África do Sul.

Nas décadas seguintes, o muro caiu e os EUA celebraram a vitória da democracia e da liberdade sobre o totalitarismo soviético. A Europa deu novos passos na sua união e, tal como pedia a música, alargou um espaço sem fronteiras para pessoas, bens e serviços. O Apartheid terminou e o racismo foi condenado em todo o mundo.

Seguros de si próprios e embevecidos por um período de paz e prosperidade, em 2001, a Europa e os EUA apoiaram a entrada da China na Organização Mundial do Comércio. As grandes nações avançavam assim numa era de cooperação, globalização, comércio internacional e desenvolvimento tecnológico, que contribuíram para retirar milhões de pessoas da pobreza.

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Mas nos últimos 15 anos assistimos a uma crise financeira brutal, vimos o Reino Unido abandonar a União Europeia e vivemos uma crise pandémica global, associada a uma radicalização de posições doutrinárias e a fortes quebras nas cadeias de abastecimento globais.

Chegados aqui, a expansão chinesa e a guerra de Putin espoletaram um clima de competição, desconfiança e medo. Vivemos agora tempos complicados, marcados por uma tensão crescente entre os EUA e a China, entre a Europa e a Rússia, entre o Ocidente democrático e as potências governadas por autocratas.

A Alemanha atingiu o primeiro défice da balança comercial desde 1991. Os EUA entraram em recessão. O Presidente italiano e o Primeiro-Ministro Britânico caíram. O Sri Lanka, o Paquistão, a Serra Leoa e muitos outros países estão a braços com crises políticas, sociais e económicas graves. Os governos tombam e abrem-se novas guerras de poder, com as respetivas forças de influência, relembrando os velhos tempos da Guerra Fria.

A NATO declarou a Rússia como “a ameaça mais significativa e direta” à segurança euro-atlântica e “à paz e estabilidade” e afirmou que a China tem “ambições e políticas coercivas” que colocam em causa os “interesses, segurança e valores” dos aliados.

Vemos o Presidente dos EUA visitar a Arábia Saudita para pedir a um príncipe de 36 anos que produza mais petróleo. Um príncipe de uma nação pouco livre que aplica os proveitos do petróleo em projetos megalómanos, enquanto o mundo se depara com uma crise económica e social. Vemos, umas semanas depois, Nancy Pelosi fazer uma visita a Taiwan que levou a China a realizar exercícios militares ameaçadores.

A escalada dos preços da energia e dos alimentos deterioram a qualidade de vida das populações e criam um clima propenso para populismos de várias formas e feitios. Enquanto faixas da população perdem poder de compra, os produtores de petróleo e algumas empresas batem records de lucros, alimentando discursos radicais. Perante este contexto não podemos deixar que o paraíso dos ricos seja o inferno dos pobres, como afirmou Victor Hugo.

Enquanto em pleno inverno, os Europeus vão ser forçadas a poupar energia e a lidar com os impactos da inflação, o mundo vai assistir a um mundial no Qatar, um país que se vai apresentar rico e poderoso, com os seus arranha céus e estádios mirabolantes. Um país “não livre” que atropela diversos direitos humanos.

Perante este contexto os Governos nacionais estão a tomar ou a equacionar diversas medidas. Aumentar as taxas de juro para controlar a inflação. Aproveitar o excedente orçamental resultante da inflação para descer os impostos sobre a energia e apoiar as famílias com menores rendimentos na aquisição de bens essenciais. Taxar os setores que mais estão a lucrar com a guerra e canalizar esses impostos para apoiar os mais desfavorecidos. Incentivar a inovação para aumentar a produtividade e acelerar novas formas de produção de energia. Reforçar alianças estratégicas, políticas, económicas e militares. Apostar na cooperação internacional com os países com mais dificuldades para evitar que estes caiam na esfera de influência da Rússia ou da China. Utilizar o discurso político para reforçar a importância da democracia, da liberdade e da justiça social. Intensificar as sanções à Rússia, reduzindo as importações de petróleo, carvão e gás para retirar recursos a Putin. Desenvolver mecanismos de proteção para os países mais endividados. Apostar na sustentabilidade, na eficiência energética e na economia circular para reduzir consumos. Intensificar a produção de energia renovável, mas também de energia de fontes não intermitentes, como a nuclear. Reforçar e criar redes logísticas que permitam adquirir e transportar gás natural. Interligar energeticamente a União Europeia.

Perante a pandemia, a guerra, a escassez de alimentos, a inflação, a crise energética, os desafios demográficos e as alterações climáticas, é natural que os governos intensifiquem o seu papel, procurando assegurar a defesa, a estabilidade social, a segurança energética e a competitividade dos seus Países.

Dito isto, essa intervenção não deve prejudicar a qualidade da democracia, nem a liberdade dos cidadãos. Por outro lado, os grandes desafios mundiais só podem ser resolvidos através da cooperação internacional, especialmente sabendo que a China, a Índia e África representam mais de metade da população mundial.

Mas, infelizmente, volvidos 51 anos de Imagine, estamos mais longe do sonho de Lennon do que estávamos no início do milénio. Em 2022, adensam-se diferenças e fronteiras. Aumentam-se os arsenais militares. Terminam-se conversações internacionais. Desvalorizam-se as organizações de cooperação internacional. Intensifica-se a guerra económica. Escalam-se ameaças. Disputa-se o acesso a fontes energéticas e matérias primas essenciais.

Talvez seja idílico pedir um mundo sem países, fronteiras ou religiões, no qual, tal como dizia Sócrates, não sejamos nem gregos nem atenienses, mas cidadãos do mundo. Mas a maioria das pessoas não quer nem beneficia com este estado das coisas.

Se os governos têm o seu papel, cabe também a cada cidadão exercer a sua liberdade e responsabilidade social, exigindo aos líderes políticos um mundo mais pacifico, mais cooperante, mais democrático, mais justo e mais livre. Se necessário com as novas gerações nas ruas, como os jovens de então fizeram nos idos de 60 e 70. Ou então, através da sua cidadania, retirando da natureza apenas o que precisamos, reduzindo desperdícios, respeitando as diferenças, cumprindo as obrigações cívicas e votando em partidos e líderes moderados. Talvez assim possamos voltar a aproximar-nos de um mundo que viva como um só.