1 Sobre a política de imigração e o seu debate nas democracias
A imigração existe. Posto desta maneira singela pode parecer um truísmo. No entanto, e importante termos um debate sobre imigração começando pelo básico do básico. Os imigrantes irão entrar ou sair de forma legal ou ilegal. Consequentemente, o Estado terá de ter uma forma de lidar com eles. Os partidos políticos necessitam de fazer escolhas políticas sobre políticas públicas de imigração. Fingir que não há necessidade de o Estado usar procedimentos legais, burocráticos e racionalistas para lidar com o fenómeno não resolve nada e parece-se mais com um fenómeno psicanalítico de denial. Fazer alterações legislativas substanciais sem as discutir abertamente e de forma séria também não me parece correcto. O debate público, por muito que nos pareça superficial e estéril, cheio de espantalhos e melodrama, é parte essencial das funções representativa e responsiva da democracia.
O tema da imigração é extremamente sensível nas nossas democracias e susceptível de inúmeras falácias argumentativas e emotivas. Parece-me que importa relembrar duas coisas fundamentais. Em primeiro lugar, a democracia não exige fronteiras abertas: a democracia é um sistema onde as populações se governam a si próprias, e portanto se autodeterminam, através de decisões tomadas por maiorias, que se constroem e oscilam dentro de um demos – uma comunidade nacional – com relativa continuidade espacial e temporal. Do ponto de vista teórico, é perfeitamente possível imaginar uma democracia com uma política migratória muito expansiva ou muito restritiva, sem nunca colocar em causa os fundamentos éticos da democracia. Assim, a esquerda deve aprender a não rotular todos aqueles que querem restringir os fluxos migratórios como sendo anti-democráticos. É perfeitamente possível ser um democrata pleno e ter preferências políticas de restrição da imigração face ao status quo. É um debate político legítimo a ter numa democracia: qual o volume (números) de imigração desejado pela opinião pública, quais os critérios (selectividade) para imigração desejados e qual a extensão dos direitos que damos aos imigrantes que já cá estão de forma legal ou ilegal. Muito para além do caso concreto, as reacções ao caso do Martim Moniz foram mais um terreno onde as várias facções políticas tentaram avançar e fazer ouvir a sua posição no que toca ao assunto, crescentemente em voga nas democracias europeias.
Em segundo lugar, os nossos regimes de democracia liberal têm obrigação de tratar todos aqueles que já cá estão, ou estão sob alçada soberana do nosso Estado, com princípios mínimos de protecção da dignidade individual, do due process e da proporcionalidade, mesmo que estas pessoas sejam um inconveniente ou indesejadas pela maioria da população. Dado que vivemos numa ordem internacional de base territorial, o Estado é responsável pelo tratamento inevitável de quem já cá está, mesmo que tenha chegado de forma ilegal, e tem obrigação de tratar estas pessoas de acordo com certos princípios. Assim, a direita não deve aceitar todo o tratamento musculado de imigrantes por parte do Estado como justificável, mesmo que não os deseje ou queira desenhar políticas migratórias mais restritivas do que as actuais.
Nem todos iremos concordar sobre o equilíbrio ideal entre as restrições à liberdade individual que aceitamos em troco da manutenção da ordem pública que queremos na nossa sociedade. Mas o princípio da proporcionalidade parece-me sensato: quanto maior a ameaça potencial, mais musculados os meios do Estado e vice-versa. Também não me parece correcto fazer racial ou social profiling, isto é, ter as forças de segurança a aplicar modos de actuação diferentes para níveis de violência, ameaça ou desordem semelhantes, consoante apenas a composição étnica ou social da zona ou dos indivíduos. O grau de proporcionalidade na acção do Estado deve ser semelhante independentemente do estatuto do indivíduo.
2 Sobre os consensos existentes na opinião pública
No entanto, há muito mais consensos nas nossas sociedades sobre o tema da imigração do que se possa pensar. Em Portugal, um estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, revelou que os eleitores do PS e da AD (a maioria do eleitorado) têm opiniões muito semelhantes e concordam acerca do nível desejado de imigração, os direitos a atribuir aos imigrantes, bem como sobre políticas de reagrupamento familiar e naturalização. Pelo contrário, os eleitores do Chega têm claramente posições mais restritivas, mas também são uma minoria no que toca ao eleitorado como um todo.
Na verdade, na maioria das democracias avançadas que recebem imigrantes, há uma pequena minoria (10 a 20%) de pessoas que deseja uma política aberta muito expansiva, mesmo que tal implique fazer sacrifícios para acolher mais imigrantes. E há também uma pequena minoria de tamanho semelhante (10 a 20%) que afirma ser contra todos ou quase todos os tipos de imigração. Mas a vasta maioria da população não é nem uma coisa nem outra. A maioria da população não é xenófoba nem ultra-internacionalista, mas sim “altruístas nacionalistas”, no termo do investigador Alexander Kustov: pessoas que colocam o bem-estar dos seus concidadãos como mais importante e mais prioritário do que o bem-estar de pessoas de outros países. Quase ninguém (tirando uma pequena minoria internacionalista) está disposto a ajudar imigrantes se isso implicar um custo negativo para os seus concidadãos. Ou seja, a maioria das pessoas tem preferências condicionais no que toca à imigração: desejam imigração desde que tal seja percepcionado como benéfico para o seu país. Nestes benefícios encontram-se não apenas os benefícios económicos mas também outros aspectos de transformação sociocultural. Naturalmente, pessoas diferentes têm preferências pessoais diferentes sobre o valor relativo de uma coisa e de outra.
Importa relembrar que os principais beneficiários da imigração nas nossas sociedades são as classes altas e médias-altas: aqueles que têm empresas que utilizam mão-de-obra imigrante e aqueles que consomem mais intensamente os serviços que usam mão-de-obra imigrante mais barata (restauração, limpeza e ajuda doméstica, entregas ao domicílio, motoristas, etc). As classes médias-altas e altas utilizam muito mais estes serviços, e portanto têm um benefício pessoal muito mais elevado, do que as classes médias-baixas e baixas. Essas classes médias-altas e altas também contactam muito mais com imigrantes com altas qualificações e perfil socioeconómico elevado na sua vida. E costumam viver em bairros privilegiados, que partilham com imigrantes do seu perfil educacional e socioeconómico.
Por outro lado, as classes médias-baixas frequentemente sentem que não veem benefícios concretos da imigração nas suas vidas. A investigação sobre o impacto da imigração de baixas qualificações na evolução salarial dos trabalhadores nesses sectores é variada (impacto nulo, negativo ou positivos consoante os estudos e casos analisados). Mas parece certo que estas camadas da população beneficiam menos deste tipo de imigração do que as camadas mais altas, cujo perfil económico é complementar (e não substituto) da imigração de baixa qualificação. Parece também largamente aceite por todos que, muitas vezes, os benefícios da imigração para as classes médias-baixas não são visíveis, enquanto os seus custos muitas vezes são mais visíveis do que para as classes altas – mais pressão em infraestruturas e serviços públicos nas suas zonas, por exemplo, ou transformações dos seus bairros que não apreciam (seja qual for a razão, mesmo que estética).
A melhor maneira de gerar consenso sobre imigração na sociedade é fazer com que a maioria dos cidadãos a veja como benéfica para o país como um todo. Não é uma motivação satisfatória do ponto de vista das teorias filosóficas e éticas de justiça global – na medida em que é uma motivação utilitária e que apela aos interesses egocêntricos das populações nacionais – mas tende a ser a realidade da opinião pública na maior parte dos países.