O projeto de portaria, recentemente anunciado, que pretende impedir os doentes que chegam pelos seus próprios meios ou que sejam triados com prioridades “baixas” (verdes e azuis) para tempo de observação médica, de serem atendidos num serviço de urgência (SU) é, nos termos em que foi noticiado, uma enorme asneira técnica e um manifesto atropelo sobre direitos individuais. Com ou sem consulta pública que, pretensamente, o valide.

Começa, desde logo, por pretender obrigar alguém que se sentiu doente e que entendeu que o local adequado para o atender seria um SU, que pegue “num telefone instalado no local” (entenda-se, à porta do SU!) e que ligue para a linha SNS 24 para ser triado telefonicamente. Em primeiro lugar, assume-se que a pessoa o conseguirá fazer (o que não é necessariamente verdade) e em segundo lugar pretende-se desviar uma pessoa (doente) de uma triagem presencial, disponível a menos de 5 metros de distância, para uma triagem telefónica, aumentando, desse modo, a possibilidade de erro e o tempo despendido… Além de prepotência e despotismo, não se vislumbra qual o alcance desta medida…

Depois, pretenderá, alegadamente, impedir os doentes que sejam triados como verdes (pouco urgentes, tempo recomendado para serem observados por um médico inferior a 2 horas) ou azuis (não urgentes, tempo recomendado para serem observados por um médico inferior a 4 horas) de serem atendidos num Serviço de Urgência e sejam encaminhados para uma consulta, preferencialmente, nos cuidados de saúde primários (no próprio dia ou no dia seguinte). Ora esta é mais uma péssima opção. Porque: 1) confunde “prioridade para observação médica” (medida em tempo) com “necessidade de observação médica” (definida com base em diagnósticos). Ser triado como verde ou azul significa que poderá ser visto mais tarde (repare-se que mesmo para os verdes, é recomendado que seja visto em menos de duas horas- nunca no dia seguinte!) mas não implica que não seja uma situação com alguma gravidade ou complexidade; 2) ignora o fenómeno da “subtriagem”, ou seja, de haver um erro no sistema de triagem que atribua menor prioridade a situações mais graves. Comumente é assumido que esse erro possa ser de cerca de 5%. Portanto, um valor não desprezível em SU que recebem 400 doentes/dia (20 doentes/dia que serão enviados, erradamente, para fora do SU!) mas que em alguns estudos e para situações graves poderão ser mais elevados. Um estudo realizado em Portugal, em 2008, demonstrou que 11% dos doentes com enfarte agudo do coração, confirmado, foram triados como verdes (iriam, portanto, ser impedidos de entrar no SU!); um outro estudo internacional publicado em 2020 demonstrou que nas situações de “dores de cabeça”, 10% das situações graves tinham sido triadas como verdes ou azuis; e um outro estudo, demonstrou que 6% dos doentes que tinham morrido nos 7 dias seguintes a terem ido a um SU por “falta de ar”, tinham sido triados como verdes ou azuis; 3) Ignora a possibilidade de agravamento clinico (ser verde no momento da triagem mas agravar nos minutos seguintes); e 4) faz “tábua rasa” do “direito de escolha dos serviços e prestadores de cuidados de saúde”, conforme previsto na Lei nº 15/2014, de 21 de março.

Não se percebe ainda quem/como serão assumidos os custos das deslocações “forçadas”.

Para além disso, trata-se de uma medida que, aparentemente, não é sustentada em qualquer estudo científico validado ou em resultados publicados e, eventualmente, replicáveis.

Não prevê cabalmente potenciais estrangulamentos, como sejam a disponibilidade de telefone no SU, aa capacidade de resposta dos cuidados de saúde primários, a capacidade de resposta e correto encaminhamento da SNS24 nem a capacidade de resposta do INEM.

Do ponto de vista clínico, coloca ao mesmo nível uma referenciação realizada por uma linha telefónica (SNS 24) de uma realizada por um médico com “informação clínica assinada” ou por outra instituição de saúde.

E finalmente, comete dois erros que terão repercussões no médio/longo prazo: 1) uma vez que o modelo pretenderia ser implementado de forma progressiva, leia-se, à medida que houvesse Médicos de Família/Cuidados de Saúde Primários disponíveis para todos, iria criar um sistema multifacetado, todo ele diferente (na verdade, a antítese de “sistema”), com enormes assimetrias entre regiões, umas com SU que continuarão a receber e atender toda a gente, por tempo indeterminado, e outras com recusas de atendimento a determinados doentes, para populações semelhantes e com os mesmos direitos; 2) Iria, de forma perigosa, transladar a capacidade/horas disponíveis dos Médicos de Família para fazerem o acompanhamento das doenças crónicas e a prevenção da doença, para os Cuidados de Doentes Agudos, com um preço a pagar no futuro em termos de Saúde da população absolutamente desconhecido mas potencialmente muito elevado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR