Uma das primeiras cenas do romance francês Submissão, de Michel Houellebecq, ilustra bem a maneira como o Ocidente olha hoje para Israel. O protagonista do romance, François, um professor em Paris, conversa com a sua amante Myriam, uma estudante universitária de origens judaicas. A França pode estar prestes a eleger um presidente islamita – um desfecho que só pode ser evitado com uma guerra civil ou com um triunfo eleitoral da Frente Nacional. Myriam diz a François que os seus pais, aterrorizados, decidiram emigrar para Israel – e que ela também vai. François medita no que ouve e, quando chega a hora da despedida, lamenta: “il n’y a pas d’Israël pour moi.”

Podemos ler nestas palavras uma espécie de confissão ocidental de indigência nacional, de alienação, ou de despossessão. Tempos houve em que os cidadãos franceses (e europeus) sentiam de forma unânime que pertenciam ao seu país, tal como o seu país lhes pertencia. Este era um sentimento tão consensual que quase não era consciente. O que Myriam e os seus pais procuram – um país natal, um lar que é deles -, é o que François está a perder, quase sem dar por isso. É uma perda enorme mas intangível. François recebe alguma compensação no final do romance, quando se converte ao Islão e contempla um futuro com múltiplas mulheres – como compete a um homem da sua importância.

Mas o lamento de François encobre uma certa inveja de Israel. É um sentimento generalizado em França, alimentado por brutais episódios de terrorismo islâmico e pelas inevitáveis fricções que acompanham a vida numa sociedade multicultural. Batalhas quotidianas sobre policiamento, o currículo escolar, ou o que pode ou não pode ser usado na praia tornaram-se no “novo normal” francês. Essa inveja de Israel é sentida especialmente pela direita francesa que descende de Charles de Gaulle – que famosamente distanciou a França de Israel depois da Guerra dos Seis Dias em 1967 -, e até pelos simpatizantes da Frente Nacional, cujo ex-líder Jean-Marie Le Pen expressava simpatia pelo regime colaboracionista de Vichy a qualquer oportunidade.

Israel concluiu recentemente um conflito militar com o Hamas – o terceiro em apenas 13 anos. Os resultados foram sempre os mesmos: destruição massiva de infraestrutura em Gaza, elevadas vítimas mortais de civis palestinianos e um punhado de mortos do lado israelita. A conflagração mais recente foi menos destrutiva do que em 2014, quando o exército israelita chegou mesmo a invadir o território de Gaza. Mas o uso de bombardeamentos aéreos contra alvos civis chocou a opinião pública ocidental. É fácil simpatizar com os indefesos cidadãos palestinianos de Gaza, mortos como danos colaterais, e ver a morte de crianças na televisão é sempre visceralmente chocante.

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O recente conflito começou depois de os tribunais israelitas terem dado ordem de despejo a meia dúzia de famílias palestinianas que viviam em Sheik Jarrah, um bairro em Jerusalém Oriental. A ação de despejo foi vista por muitos palestinianos como um símbolo supremo do projeto sionista. O Hamas – cuja atenção política está focada no combate com outro grupo palestiniano, a Fatah, pelo controlo da Cisjordânia – reagiu aos despejos enviando uma enxurrada de mísseis para Israel. Para além de Jerusalém e Gaza, o mais recente conflito israelo-palestiniano também envolveu as populações árabes que vivem nos territórios diretamente ocupados por Israel, sobretudo devido a confrontos étnicos na cidade mista de Lod.

Há uns 15 ou 20 anos atrás, a opinião pública ocidental – especialmente americana – era bastante reticente a criticar Israel. Acusar Israel de ser um Estado que promove o apartheid não era de bom tom. Mas as acusações de apartheid têm-se tornado cada vez mais comuns, não só na extrema-esquerda mas também junto de respeitáveis elites centristas. A prestigiada organização não-governamental, Human Rights Watch, publicou este ano um relatório que acusa Israel de impor um apartheid às populações palestinianas. Como sempre em política, o mais importante nesta acusação não é a veracidade do seu conteúdo, mas as suas consequências: para a esquerda ocidental, um regime que promove um apartheid racial está a incorrer no mais grave dos pecados mortais e precisa urgentemente de ser destruído. De maneira geral, os judeus europeus e americanos que apoiam Israel reconhecem a gravidade da palavra apartheid e têm-se esforçado para travar a sua disseminação no discurso ocidental. Sem sucesso.

Mas apesar de a guerra israelo-palestiniana ter estimulado uma aceleração da retórica anti-israelita – bem como um aumento da violência contra judeus – nos Estados Unidos, Reino Unido, e França, não foi isso que se passou no resto do mundo. O Hezbollah – a fação xiita libanesa que, com apoio iraniano, possui um arsenal de mísseis que poderiam fazer muito mais dano a Israel do que o Hamas – manteve-se notoriamente silencioso durante o bombardeamento de Gaza. O Egipto, o maior e mais importante país árabe, ajudou a mediar um cessar-fogo; a atitude egípcia em relação ao Hamas não difere praticamente nada de Israel. Claro, os cidadãos egípcios poderão ser muito mais anti-israelitas do que o governo presidido por Al-Sisi, mas a verdade é que o conflito com o Hamas não mudou em nada a vontade de Cairo de aprofundar as suas relações com Israel. Em relação à Arábia Saudita, idem, aspas. A Síria tem os seus próprios problemas com o islamismo radical e não teve nada a dizer durante a guerra. Assim, o ambiente diplomático de hoje é radicalmente diferente dos anos setenta, quando Israel era confrontado com uma cintura islâmica de vizinhos hostis, que ia de Marrocos até ao Paquistão. (Em 1973, o apoio americano a Israel levou os países árabes a impor um embargo nas exportações de petróleo para o Ocidente, causando uma grave crise económica.)

Portanto, o balanço de hoje é que Israel é mais popular – talvez o termo certo seja “menos impopular” – pelo mundo fora, mas mais detestado pela esquerda ocidental. Foi em parte este relativo sucesso diplomático que ajuda a explicar a manutenção no poder durante tanto tempo do controverso primeiro-ministro Benjamim Netanyahu. Não há dúvida que os palestinianos que vivem nos territórios ocupados por Israel são desfavorecidos e marginalizados – é impossível negá-lo. Mas a questão é até que ponto é que esse fator influencia, ou deve influenciar, a atitude do Ocidente perante Israel. Poucos palestinianos residentes na Cisjordânia ou Jerusalém estariam dispostos a trocar de lugar com os uigures chineses, cujo sofrimento não parece incomodar muito as elites ocidentais.

A posição oficial do Ocidente e dos Estados Unidos em relação a Israel é a mesma desde há décadas: Israel deve conceder o território da Cisjordânia como núcleo de um Estado palestiniano independente, e em troca os palestinianos devem aceitar a existência de Israel nas suas fronteiras internacionalmente reconhecidas. Esta chamada “solução de dois Etados” ganha força quando pensamos nas alternativas. Se Israel continuar a ocupar a Cisjordânia, mais tarde ou mais cedo vai ter que escolher uma de três possibilidades: ou se transforma formalmente num Estado apartheid, com uma cidadania de segunda para os árabes; ou expulsa as populações árabes da Cisjordânia, num ato de limpeza étnica cuja atrocidade moral dificilmente seria perdoada e nunca seria esquecida; ou anexa formalmente a Cisjordânia e concede cidadania total aos árabes, o que levaria a uma diluição tal do caráter judaico do país que este deixaria de ser “Israel”. Não há fuga possível desta escolha impossível.

Mas se o Ocidente e os Estados Unidos adotarem como política oficial o tipo de antissionismo ascendente na esquerda – colocando Israel na categoria de “Estado pária” similar à África do Sul do apartheid -, a resolução da questão palestiniana torna-se impossível. Muito provavelmente, Israel iria preferir alterar as suas alianças diplomáticas do que se submeter contrariado à formação de um Estado palestiniano. Israel não é só um Estado marioneta dos americanos; é uma potência militar e tecnológica autónoma, respeitada por outras grandes potências como a Rússia ou a China. Isto quer dizer que Israel é um aliado cobiçado por muitos, e uma reversão de alianças no Médio Oriente não beneficiaria o Ocidente.

No médio prazo, a melhor coisa que podia acontecer a Israel seria uma melhoria significativa das condições de vida e da dignidade das populações árabes, acompanhada de uma diminuição das ameaças à segurança física dos israelitas. O Ocidente não pode forçar os acontecimentos; quaisquer mudanças terão de vir de dentro de Israel. Antes de se tornar primeiro-ministro em 1992, Yitzhak Rabin não era geralmente considerado como um líder transformador; mas hoje, quase três décadas depois do seu assassinato às mãos de um sionista radical, é uma figura respeitada pela comunidade palestiniana. Quem sabe se o novo governo israelita não dará origem a uma figura tão corajosa como Rabin; resta-nos esperar que sim, para que um dia tanto árabes como judeus possam dizer, “há um Israel para mim.”