Faleceu ontem Jacques Delors, o “Senhor Europa”. Jacques Delors presidiu à Comissão Europeia numa época crítica para o que viria a ser a União Europeia, tendo sido responsável por algumas das mais importantes reformas da CEE. Devemos ao “Senhor Europa” o conceito do Mercado Único Europeu baseado na livre circulação de pessoas, bens e capitais, uma das maiores marcas da União Europeia que culminariam com a criação do Euro na viragem para o século XXI. Era por isso expectável que todos os partidos europeístas lhe prestassem homenagem no momento da sua morte.
No entanto, o único partido a fazê-lo nas suas redes sociais foi a Iniciativa Liberal. E fê-lo com pompa e circunstância, para meu espanto. Não que me devesse espantar com partidos liberais que prestam homenagens a figuras centrais de um partido socialista, isso é uma prática normalizada em qualquer país da UE, onde são comuns alianças entre partidos liberais e socialistas (ou sociais-democratas), mas porque não bate certo com a mensagem do discurso e comunicação dos nossos “liberais”.
Jacques Delors foi toda a vida um homem de esquerda, militante do Partido Socialista Francês até à sua morte. E não foi um socialista qualquer. Integrou o Governo de François Mitterand numa coligação com o Partido Comunista (pensavam os leitores que a geringonça portuguesa era uma coisa muito revolucionária?) como Ministro das Finanças e Ministro da Economia, o que resultou precisamente na queda abrupta do Partido Comunista Francês (não muito diferente do resultado da geringonça portuguesa… quem diria?).
Como já referi, enquanto Presidente da Comissão Europeia foi responsável por reformas favoráveis a um mercado mais livre. No entanto, foi também uma barreira à onda do neoliberalismo de Reagan e Thatcher nos anos 80, tendo sido um dos seus principais opositores e defendendo o modelo social europeu, favorável à redistribuição de riqueza e à dimensão social do mercado Europeu, privilegiando a integração e subsidiação dos países menos desenvolvidos com o objetivo de equilibrar a balança entre os mais ricos e os mais pobres. Em suma, Jacques Delors é a personificação de um político moderno de centro-esquerda, com o qual qualquer europeísta se identifica e, ideologicamente, muito próximo daquilo que têm sido os governos do PS e PSD ao longo da nossa tenra democracia com algumas diferenças pontuais, naturalmente. Esta marca de Delors e do modelo social europeu contrasta fortemente com o funcionamento da economia americana e resultou num inegável maior bem-estar social na Europa por comparação com os EUA.
Diz a IL na sua publicação que “o seu legado é de uma Europa mais forte, mais rica, mais coesa, mais pacífica e com mais oportunidades para os seus cidadãos”. Não poderia concordar mais. Fica por entender, pois claro, o porquê do contraste entre a comunicação usual do partido e esta publicação. Tivesse Jacques Delors outro nome, por exemplo, António Costa, e estaria a IL a compará-lo com Marx, como faz habitualmente. Tivesse Jacques Delors outra nacionalidade, por exemplo, portuguesa, e seria mais um alvo da IL na sua guerrilha contra um sistema fiscal progressivo. É incompreensível, dadas as semelhanças ideológicas entre ambos os protagonistas (repare que não me refiro a competência nem espírito reformista, essa seria outra discussão).
Fica a nota, ou o lapso, de que até a IL concorda que é necessário ter uma economia de mercado regulada e com um Estado interventivo, favorável ao investimento público e não apenas regulador, como participante na construção do crescimento económico junto com o mercado, complementar e não inimigo do crescimento e do bem-estar social. Enquanto social-liberal só fico satisfeito, mas deixo a questão: quando é que a IL vai sair da puberdade e voltar-se para um discurso mais maduro e com programas eleitorais voltados para o social-liberalismo que tanta falta faz a Portugal? Teríamos todos a ganhar, com exceção de André Ventura, por quem a IL faz campanha de borla com o discurso corrosivo ao estilo da época da Guerra Fria, já terminada há mais de 30 anos.