1. Não sei se ele disse tudo — e será que alguém, alguma vez, diz tudo? — ainda não li o livro, (“Um Cirurgião em Construção”, Gradiva) – mas o que quero é fazer como toda a gente ali, na Ordem dos Médicos, naquela tarde: quero lembrá-lo. Libertando-o desta coisa terrível de em Portugal se morrer de vez, por isso o livro pode ficar para amanhã, ele não. Sim, valeu a pena a apresentação da obra, estiveram lá os que ele gostaria que estivessem, instituições, médicos, professores, colegas. Muitos amigos. O editor Guilherme Valente. O cirurgião Bicha Castelo que apresentou o livro. Cavaco claro. A família, irmãos, o Manel e o Miguel, sobrinhos, parentes. E as filhas. Ouvimos Margarida e Paula, direitas, dignas, decentes, uma quase imperceptível lágrima na voz, a falar com ele através de nós, ah esta “dinastia” Lobo Antunes… Ouviram-se as palavras certas, o João teria gostado, sim, do que — envaidecido – ouviu lá nas alturas desse céu onde se festejou a Ressureição. E no qual nunca saberemos – isto é, nunca saberemos bem — se ele acreditava ou não, embora um dia me tivesse dito diante de um gravador que “não tinha essa graça”e eu tivesse ficado na dúvida.
2. Desde sempre que João Lobo Antunes se interrogou sobre “o enigma moral do seu ofício”. Sei que foi assim. Conheci-o cedo, pude testemunhar umas vezes de perto ou muito perto, outras mais de longe, a seriedade intelectual, a inquietação, a tenacidade, com que sempre se interrogou sobre esse “enigma moral do seu oficio”.
Lembro-me que dizia — e a sua vida provou quase até ao limite de si mesmo a que ponto isso era verdade — que tinha um “entendimento sacerdotal da medicina”. Tinha. Talvez por isso e testemunhando isso, fui percebendo que estava diante de alguém que ia transbordando do seu próprio curriculo, por muito que ele por si só nos revelasse a excelência de um percurso. Fez do cruzamento da ciência com o humanismo uma forma de vida. E da busca permanente da ética ao serviço de corpos e almas, a chave para “o enigma moral do seu ofício”.
Sempre me interpelou. Admirei-o muito.
3. Recorde-se um pouco da sua história como aqui já o fiz há uns anos de forma brevíssima, num texto onde me inspirei, agora um pouco mais ampliado: a sua memória reclama-me o gesto de o recordar.
Nasceu na primavera de 1944 e lembrava um menino exemplar: nunca havia, nem na escola nem em casa, reparos a fazer-lhe. Eram seis irmãos, a casa era no meio das hortas de Benfica, um quase mundo á parte num ambiente familiar feito de uma silenciosa austeridade: na família sempre se achou natural o cumprir. Havia também um avó militar que muito influenciou o neto João, aprofundando a educação religiosa que os pais fizeram questão que os filhos recebessem. Aliás, a paróquia de Benfica honrava anualmente a procissão da Senhora da Saúde porque os cabeções de renda dos seis meninos de coro Lobo Antunes eram costurados pela avó e por isso alvo de distinção sempre renovada!
No segundo ano de medicina com 18 anos, obteve pela primeira vez a classificação de vinte valores. A euforia sem limite que então o embalou só voltou a senti-la mais uma única vez quando, muitos anos depois, em 1996, recebeu o Prémio Pessoa. Um, entre muitos prémios, como sabemos.
4. Formou-se com 19,47 valores — um caso na Faculdade de Medicina de Lisboa — mas não por acaso: durante cinco anos estudou ininterruptamente, debruçado sobre calhamaços e esqueletos. Como ele desabafou um dia “nascera com uma predisposição genética para um sentido cego do dever”. Nunca teve férias de verão, trocando a Praia das Maçãs onde veraneava a família, pelos mistérios do corpo humano. Lembro-me bem de tudo isto porque ambos colaborávamos semanalmente no Programa Juvenil da RTP: João Lobo Antunes ainda não tinha vinte anos, eu andaria pelos 18 anos, talvez menos. Lembro-me de o achar grave, por vezes ensimesmado: porque é que aquele rapaz tão bonito, de olhar azul claro, um companheiro de trabalho tão curioso e atento aos outros, parecia por vezes taciturno e quase triste? “Estudava muito” dizia-se por lá, nessa época televisiva em que tudo era “ao vivo” e “em directo” e ai de quem se encostasse aos cenários: eram de cartão e vinham por aí abaixo. Sim, o João intrigava a minha febril juventude. Anos depois pude aperceber-me que era afinal a minha imaturidade — para lhe chamar alguma coisa – que me levava a não alcançar que o critério com que João Lobo Antunes já detectava o essencial lhe impunha a procura de prioridades menos ligeiras. Como por exemplo a de não recusar presidir, tempos depois e apesar da exigência dos estudos, à Juventude Universitária Católica, a convite de D. António dos Reis Rodrigues. Foi aliás tão impressiva a marca nele deixada por D. António, que João Lobo Antunes, mesmo que não se dissesse um homem de fé, lembrava sempre o dr. Reis Rodrigues como uma das pessoas que mais influência tiveram na sua formação e maior importância na sua vida.
Um dia abalou para os Estados Unidos completar o saber em neurocirurgia. Ficou 13 anos e “aprendeu quase tudo”. Trabalhou no Instituto Neurológico de Nova Iorque e ensinou na Universidade de Columbia. Ganhou excelente formação técnica, reteve a filosofia da profissão, nunca esqueceu os “critérios de mérito”, atingiu a excelência. Deixou saudades que, intactas, duram até hoje. No seu regresso a Portugal em 1983 continuou a praticar e ampliar estes valores ao serviço da ciência, da investigação, da vida académica, da vida cívica. Da vida do espírito.
Em Portugal – ah que pais é este que tão mal trata os seus melhores? — iniciou vida nova. Mas demorou, houve espinhos. Espantado — discretamente espantado — constatava que nada lhe era fácil e muito menos, amável. Tinha-se esquecido da insidiosa invejazinha nacional.
Até que um dia, algo se soltou e levantou voo e eis a excelência de João Lobo Antunes, como cirurgião, homem de ciência ou activo protagonista da sociedade civil, a imprimir-se no país. Evocava-se o seu mérito, sublinhava-se a multiplicidade dos seus interesses, louvava-se a seriedade e o critério com que os tratava. Acorria às diversas chamadas com um fulgor científico e intelectual que nunca porém iludia o gosto com que o fazia: gostava de ser requisitado….
Uma vez entrevistei-o. E outra vez, também. E outra. Em papel e no écran.
Mas quem me havia de dizer, décadas antes, que um dia, na sua qualidade de melhor entre os melhores, ele se sentaria diante de gravadores e câmaras de televisão e que (também) seria eu a registar os seus feitos?
5. De vez em quando falávamos. Ou em casa de amigos comuns – e como não lembrar por exemplo a doce saudade dos jantares em casa do Júlio Pomar e de Teresa Marta? Ou então eu ia ao seu gabinete da CUF mas quase sempre era a Santa Maria, subindo ao sétimo andar — seria o sétimo? — do Hospital. Sobre os nossos diálogos e com poucas ilusões sobre tudo isso, esvoaçavam intelectuais, políticos, governos, a educação que sempre o preocupava, a falta de massa critica, coisas assim, do país e da vida. Afligia-se com debilidade de algumas das nossas elites e não o escondia. Era outro dos nossos temas. Segundo ele, as elites “tinham rapidamente aprendido as regras da democracia mas não as regras do exercício da inteligência em liberdade”. Para o que ambos pensávamos, notei-lhe a elegância da forma e o comedimento do fundo mas ele era assim: comedido e elegante.
Em tudo isto de nós os dois couberam até algumas histórias políticas que a certa altura nos uniram mais, afinando a nossa a cumplicidade. Um dia toca o telemóvel, era ao almoço, eu estava num restaurante em Elvas, “o Sampaio convidou-me para seu mandatário…” Pausa. Terá feito aquele mesmo telefonema a outros, sempre porém com a mesma seriedade por detrás da sua inicial hesitação. “Espero bem que aceites…” atirei eu, subitamente atemorizada que a ponderação e a racionalidade que em tudo punha quando se tratava de avaliar e decidir, lhe desaconselhassem o convite. Um desafio que além de expressar um gesto político, pressupunha uma sobreexposição pública que talvez subitamente o fizesse balançar entre o sim e o não mas… uma das mais gratas recordações que dele guardo, foi a conversa telefónica havida nesse dia. (Mais tarde haveria de haver um segundo acto — com Cavaco – mas essa história, bem mais longa, fica para outro dia)
6. Adorava o “seu” Hospital. Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa era a responsabilidade e a paixão pela sua função de Director do Serviço de Neurocirurgia de Santa Maria que porventura ainda mais o “preenchia”. Presidiu também à sua Comissão de Ética a par de dezenas de outras comissões de natureza cultural e científica. Como por exemplo o Instituto de Medicina Molecular do qual foi fundador e ao qual presidiu. Muita coisa, tanta coisa.
Mas não eram apenas os segredos do cérebro humano que o seduziam e faziam dele um sobredotado mestre do bisturi que na sua mão avançava por delicados enrendilhados. Não. Para além de operar, tratar, investigar, ensinar (dizia que “aprendia a ensinar”), chefiar, palestrar, ia escrevendo: assumia essa escrita como contraponto ao seu ofício, dizendo “ser ela quase uma continuação do que fazia cirurgicamente, uma mistura de arte e técnica”. Escrevia para vários instrumentos: ciência, cultura, filosofia, arte, literatura, música. Pensava alto com as palavras sobre o que o interpelava mas o gesto era duplo: ao escrever, punha ao serviço do país, da universidade, das elites, dos políticos, dos jovens, o melhor de um estruturado pensamento sobre a vida, a morte, a natureza humana, as contradições do progresso, os limites da ciência. O espírito e a matéria. A estética e a ética.
Entre muitos títulos publicados e as centenas de artigos que escreveu sobre tais temas costumava dizer que “sempre entendeu a ética como a história das suas inquietações”.
Lembro-me que em 2012 deu à estampa um ensaio sobre “A Nova Medicina”, em que voltava a reflectir luminosamente sobre a ciência, as profissões e os novos desafios éticos de uma medicina tecnológica e hiperespecializada. E sem nunca deixar de se ocupar — e preocupar — com as áreas em que a ciência e a prática médica se intersectam com valores éticos e morais numa época em que as novas tecnologias parecem conferir aos homens um poder que eles não dominam, decidiu-se a reunir num só volume vários escritos sobre esta temática. O título, luminoso, “Inquietação Interminável” revela bem o seu carácter, a sua “forma mentis”, a invulgaríssima massa de que era feito. Revela sobretudo o quanto permanecia presente e sempre acesa, “ a busca do enigma moral do seu ofício.
7. Deu uma “Última Lição” na Faculdade de Medecina de Lisboa absolutamente memorável, deslocando-se com uma leveza quase flutuante de um para outro lado do palco do auditório perante uma plateia siderada onde se sentava o melhor do país. Durante talvez mais de duas horas contou e contou-se. Tanta vida, tanta luz, tanto talento, tanto serviço ao país, tanto génio na ciência e esse dom, que parecia privativo, para as humanidades. Duas horas que nos pareceram dois minutos. Mas era preciso saber fazê-lo muito bem e ele soube, pondo dentro das palavras, a verdade, o conhecimento, a subtileza, a ironia, a gratidão, a emoção. E concerteza que também essa “petite musique” interior que por vezes se pode confundir com a vaidade mas o minimo que lhe devemos é o nosso consentimento da sua “petite musique”: quem é que tinha uma mão daquelas com um bisturi e uma sensibilidade tão inspirada para ouvir as suites de violoncelo de Bach?
8. Um dia José Tolentino de Mendonça — nesse ano de 2006 ainda não Bispo e ainda não em Roma como guardião de uma das mais singulares e valiosas Bibliotecas do mundo – convidou-me para apresentar João Lobo Antunes e o Cardeal Ravasi no decurso do “Pátio dos Gentios” — um fórum da iniciativa do Pontifício Conselho para a Cultura, que promove o diálogo entre cristãos e não-crentes em diversas áreas e reúne de dois em dois anos em cidades europeias – e que nesse ano marcara encontro em Braga e Guimarães. E onde um dos mais intelectualmente dotados Cardeais do Vaticano, Gianfranco Ravasi, dialogaria com Lobo Antunes: fé, ciência, cultura, civilização, mundo e talvez o lugar do sagrado nisso tudo. A plateia, a deitar por fora, rejubilou com o brilho de ambos, eu voltei para Lisboa confundida: então a minha intuição estava certa, aquilo era mesmo assim, João Lobo Antunes parecia estranhar-me? A que se devia um esboroar de qualquer coisa que de há uns tempos para então abria um sulco no caminho entre nós?
Até hoje não soube a razão daquela imposta distância. A vida está cheia de mistérios.
9. Diziam-no um sobredotado. Repeti mil vezes e faço-o hoje de novo que preferi sempre chamar-lhe um Príncipe da Renascença.