Em 2016, depois de Trump vencer as eleições, Barack Obama visitou a Alemanha na sua ultima viagem oficial à Europa. Com um Reino Unido em pleno torpor do Brexit, Obama encontrou-se com Merkel a quem, simbolicamente, entregou a defesa do liberalismo, dos valores ocidentais e da globalização. A ironia era plena. Depois de terem derrubado o totalitarismo Alemão, a liderança Americana voltava a devolver ao velho continente a chave do liberalismo e da civilização.
O momento unipolar da Alemanha dentro da União Europeia parecia reunir as condições perfeitas para que Berlim tomasse as rédeas do liberalismo. Em contracorrente com os ventos que então já sopravam no mundo, em 2015, Merkel havia aberto as portas a um milhão de refugiados, depois de ter presidido a quase 15 anos de crescimento económico ininterrupto e ao pináculo do modelo de desenvolvimento neo-mercantalista que projectou o país para uma grande dinâmica económica enquanto toda a Europa em seu redor ardia.
Hoje, em 2024, quando Trump regressa à Casa Branca com um programa proteccionista, isolacionista e em clara retracção das instituições internacionais formais e informais que os Estados Unidos ajudaram a criar no pós-Guerra, a Alemanha não está remotamente preparada para cumprir aquilo que lhe é exigido: liderar a Europa naquele que será, muito provavelmente, o momento mais delicado desde que a integração começou. Independemente daquilo que possamos pensar sobre a distribuição de poder formal em Bruxelas, a necessidade do continente ter uma economia alemã pujante e uma liderança política forte são condições necessárias para que a Europa possa enfrentar o momento que o mundo vai atravessar.
O que aconteceu à Alemanha para ter passado da estrela da Europa para se tornar o homem doente da União? A resposta é simples: as elites políticas e económicas do país responderam aos incentivos que tinham. Por sua vez, tal como mostra Wolfgang Munchau no seu mais recente livro Kaput, a quem roubei o título desta crónica, esses incentivos acabaram por moldar as preferências dos partidos políticos e, em consequência, permear a cultura política do país.
O modelo de pendor neo-mercantalista no qual a Alemanha sustentou o seu crescimento assentou em quatro pilares fundamentais que foram sendo estilhaçados pelos acontecimentos dos últimos anos. Em primeiro lugar, a indústria Alemã viveu durante anos à custa de energia barata vinda da Rússia, apesar dos avisos continuados dos Estados Unidos sobre os perigos da sobredependência energética de utilizar um único fornecedor, especialmente num contexto em que a energia poderia ser utilizada como arma de arremeso político. Em segundo lugar, durante décadas, tal como o resto da Europa, a Alemanha viveu sob o chapéu de chuva de segurança Americana. Em terceiro, desde o início do Euro, o país aproveitou a desvalorização artificial da moeda com a integração monetária, o que aumentou artificialmente a sua competitividade. Por último, num momento de hiperglobalização, a Alemanha tinha uma estrutura económica francamente complementar à China o que tornou os dois países parceiros privilegiados.
Tudo isto é o mundo de ontem. No mundo de hoje, a energia barata da Rússia acabou, o chapéu de segurança Americano está periclitante, o que implica um gasto muito considerável em defesa e a pandemia marcou o início do fim de uma era em que a dependência da China nas cadeias de produção era total. Numa palavra, a Alemanha tem de reinventar-se num mundo em total mundança.
Naturalmente, a Alemanha tem ainda muitas armas para jogar para conseguir inverter a situação. Por um lado, tem uma das maiores taxas de produtividade do mundo e uma posição geográfica absolutamente privilegiada. Por outro lado, tem ainda uma dívida pública baixíssima, devido em grande medida ao travão constitucional ao endividamento. De resto, este foi o motivo mais próximo que levou ao fim da coligação eleitoral: devem as elites alemãs acabar com o travão constitucional à dívida para fazerem os investimentos indispensáveis para trazer o país para o século XXI em termos de digitalização, aposta em novas tecnologias e na renovação de grande parte da infraestrutura do país?
Esta será, sem dúvida, a questão central das próximas eleições de Fevereiro. É aqui que se jogará o futuro da Europa e de Portugal, independentemente das piruetas que as elites Portuguesas façam em torno de questões menores.
Visto de Portugal existe uma enorme ironia em tudo isto. Há dez anos, no pináculo da crise das dívidas soberanas, a Alemanha tornou a austeridade uma questão moral e de expiação de culpa. Com acesso ao crédito barato, as elites do Sul tinham cometido enormes erros na gestão dos seus países. Esses erros, na verdade, corresponderam a respostas racionais aos incentivos institucionais de então. Trabalhei na Alemanha entre 2014 e 2017 e testemunhei em primeira mão os termos em que muitos Alemães, na sua maioria académicos e educados, colocavam a “Questão do Sul”. Não era um espectáculo edificante. Neste momento, os erros que as elites Alemãs cometeram, tal como as elites do Sul a responder a incentivos racionais, podem custar muito mais caro à Europa. Veremos quem expiará a culpa desta vez.