Só se houver um cataclismo Emmanuel Macron não será o próximo Presidente da França. E só se houver um milagre é que a sua eleição resolverá os problemas da França e reverterá a ascensão sustentada da revolta populista.
Segui com atenção o debate Macron/Le Pen e, ao contrário da maioria, saí de lá menos entusiasmado com o candidato centrista do que estava antes. É verdade: ele resistiu bem aos ataques furiosos da candidata da Frente Nacional. É verdade: ele foi o único a apresentar lampejos de um programa político, mesmo no ambiente quase inaudível daquele combate de boxe e troca de insultos. É verdade: ele não abdicou de defender a integração europeia e o comércio internacional nem cedeu à facilidade de prometer a reversão das suas reformas. Tudo isso é verdade – mas também é verdade que não me escaparam os tiques próprios da arrogância da elite parisiense, esse clube de insiders que vive num mundo à parte de que fazem parte políticos, altos funcionários, chefes de empresa e, claro está, muitos jornalistas. Esse clube que olha de alto para o resto da França e – também – para o resto do mundo.
Mas não serão estes defeitos de Macron o seu principal problema – o seu principal problema é que ele é, em parte, uma mentira e, ao mesmo tempo, a França que sai destas eleições é um país ainda mais dividido, confuso e difícil de governar.
A parte de mentira de Macron é que ele não é tão outsider como se apresenta. Nem está tão distante de Hollande como passa a vida a repetir (há mesmo quem defenda que era o “candidato secreto” do actual Presidente). Tal como é parte da sua mentira a relativa ambiguidade do seu programa eleitoral. Promete, por exemplo, a consolidação orçamental (indispensável no segundo país da União Europeia onde o Estado consome a maior fatia de toda a riqueza nacional, 57% em 2015) mas não explica como a alcançará, ao contrário do que fazia, por exemplo, François Fillon. Garante serem necessárias reformas para tornar a economia francesa mais competitiva, mas também não as concretiza devidamente, falemos da segurança social (num país onde a idade da reforma está ainda nos 62 anos) ou das leis laborais (não retomou o seu projecto de acabar com a lei das 35 horas).
É verdade que Emmanuel Macron é (ou parece ser) mais liberal do que a maioria dos políticos franceses de esquerda ou de direita, e isso será sempre um bom começo. Mas também é verdade que Macron defende (ou pelo menos defendeu em entrevistas a órgãos de informação estrangeiros) ainda mais integração europeia e mais “governo europeu”, o que nas actuais circunstâncias significa apoiar medidas iliberais de transferência de poderes para entidades supranacionais não submetidas a um verdadeiro escrutínio democrático.
Mas há mais, e esse mais tornou-se ainda mais evidente nos últimos dias, já depois do debate: Macron começa a ser visto por muita gente, em França mas sobretudo fora dela, como o messias que vai salvar não só o seu país da senhora Le Pen, e de vez, como o Velho Continente do populismo. Não creio sinceramente que o homem que vi naquele tenso debate esteja à altura dessa quimera. Mais depressa antecipo uma desilusão como a que tantos sentiram com François Hollande quando este abandonou todas as suas promessas de campanha. Ou um choque, como tantos viveram quando perceberam a distância entre o voluntarismo político de Sarkozy e o seu oportunismo errático.
E depois há a França. Macron não vai ser eleito por aquilo que representa, mas porque a maioria dos franceses continua a não querer uma Le Pen no Palácio do Eliseu. Macron nem sequer será eleito pelo tipo de “frente republicana” que em 2002 levou aos ombros Jacques Chirac no seu confronto com Le Pen pai. Esse sobressalto não aconteceu, nem acontecerá até domingo. No debate Macron fez tudo para colar a filha ao pai, para tentar convencer os franceses que nada separa a Frente Nacional do passado da forma que Marine hoje dirige, mas esse esforço foi dos menos conseguidos. E percebe-se porquê: Marine fala hoje para muito mais franceses do que falava o seu pai. Quem ainda não percebeu isso deve ler a reportagem de João Almeida Dias para compreender porque foi nela que votou a maioria dos operários franceses (43% logo na primeira volta).
Sobretudo Marine Le Pen faz hoje o discurso que Hollande fez há cinco anos e em que Mélenchon (e Hamon) apostaram na primeira volta. Num país onde não se pode entrar numa livraria sem tropeçar em montanhas de livros a criticar a mundialização e o ultraliberalismo, em que é também essa a linguagem dominante em boa parte dos órgãos de informação e a muleta dos políticos em apuros, Marine passa mais depressa por “socialista” do que o ex-governante socialista. E mesmo que não chegue – felizmente – para ser eleita, é com essa linguagem que os franceses mais depressa se identificam.
Macron terá assim dois problemas potencialmente irresolúveis pela frente. O primeiro é eleger uma maioria nas eleições parlamentares de Junho, cumprindo a tradição da V República em que o Presidente governa com o apoio de um parlamento da mesma cor política (os períodos de coabitação foram sempre curtos e turbulentos). Tendo como único apoio um movimento, o seu Em Marche!, o futuro Presidente terá muito mais dificuldade do que os seus antecessores a fazer eleger a maioria de que necessita, devendo ser obrigado a acordos parlamentares.
O segundo grande problema de Macron é romper com os hábitos de um país que não sabe fazer reformas, só sabe fazer revoluções. É bom não esquecer, por exemplo, que o último grande esforço para reformar o Estado e a segurança social foi em 1995 – há mais de 20 anos – e que, apesar de promovido por um Presidente recém-eleito (Jacques Chirac) e uma maioria que lhe era fiel (a dos republicanos, faleceu na rua, derrubado por manifestações e greves sem fim. Tal como é essencial não esquecer que, na primeira volta destas eleições, quase metade dos franceses votou em candidatos que se manifestaram contra o euro ou mesmo contra a União Europeia.
A campanha de Macron, a forma como decorreu o debate, a percepção de que será eleito “por defeito” e sem suscitar qualquer entusiasmo à maioria dos franceses (bem sei que muitas vezes por más razões), não permitem antever, de forma realista, que este tenha mandato para promover as profundas reformas de que a França necessita. Sem elas a França será cada vez mais “o homem doente da Europa”, como de resto já notou Rui Ramos.
Às vezes vejo comparar a ascensão de Emmanuel Macron, com a sua juventude e a sua aparente frescura, à ascensão de outros políticos jovens e fotogénicos, como John F. Kennedy ou Barack Obama. Tomam isso como um cumprimento, eu tomo como um aviso: nenhum dos dois esteve à altura das expectativas que criou. Pior: ambos não o conseguiram mesmo tendo um nível de adesão popular que Macron não tem.
É verdade: conseguiu fazer frente, no debate de quarta-feira, a uma intratável Marine Le Pen. Mas ninguém que tenha visto o debate pode dizer que ele fez sonhar ou que foi o rosto da esperança. Por isso, realisticamente, prefiro baixar as minhas expectativas – não creio que saia das eleições de domingo o novo messias que já vejo por aí anunciado. Mas já me darei por satisfeito por, mais uma vez, “o centro ter aguentado”.
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