Quando decorre entre nós, com assinalável civismo, o estado de emergência, talvez seja oportuno sugerir algumas novas “Leituras para Casa”. Permito-me por isso não escrever sobre o famigerado Covid-19, mas sobre um livro que acaba de sair e que promete reavivar com elevação o debate de ideias políticas. Trata-se de Remaking One Nation: Conservatism in an Age of Crisis (London: Polity, 2020) de Nick Timothy.
O livro estava ainda apenas anunciado para a próxima sexta-feira, 27 de Março, mas a revista The Economist já lhe dedicava uma página inteira na edição de 14 de Março (p. 24). E o Telegraph, onde o autor é cronista semanal, disponibilizou-lhe também uma página inteira (p. 20, no clássico formato broad sheet), também na edição de sábado 14 de Março.
Nick Timothy apresenta o seu livro como uma proposta para renovar o pensamento conservador (sobretudo, mas não apenas, britânico). Curiosamente, no centro dessa renovação, ele vê o combate intelectual contra o que designa por “ultra-liberalismo”:
“Precisamos de contrariar o ultra-liberalismo e desenvolver uma nova agenda conservadora que respeite a liberdade pessoal mas exija solidariedade, reforme o capitalismo, reconstrua a comunidade e rejeite o individualismo egoísta, abraçando as nossas obrigações de uns para com os outros.”
O autor argumenta a seguir que há várias modalidades de “ultra-liberalismo” e que elas devem ser distinguidas.
Cita, em primeiro lugar, o que chama “liberalismo das elites” (onde inclui o Trabalhista Tony Blair, o Conservador George Osborne e o Liberal Nick Clegg). Critica neste grupo o “ultra-liberalismo” que favorece políticas de imigração indiscriminada, multiculturalismo, desregulação do mercado de trabalho e débeis políticas de apoio à família.
Em segundo lugar, Nick Timothy cita o “ultra-liberalismo da extrema esquerda”, que inclui as chamadas “políticas de identidade”, promovendo a “luta de classes” entre as “identidades” de grupos alegadamente oprimidos contra as culturas nacionais ocidentais que os recebem. E que agora promove a censura militante contra o pluralismo e a liberdade de expressão, sobretudo nas Universidades.
Em terceiro lugar, o autor cita o “ultra-liberalismo de direita ou dos fundamentalistas do mercado” (onde o único autor citado é F. A. Hayek). Aqui inclui a defesa da desregulação do mercado de trabalho e a mercantilização de bens públicos (como seria o caso da prestação de serviços de saúde).
Perante esta breve resenha, talvez possa parecer surpreendente que a revista liberal The Economist tenha elogiado a obra. Mas o elogio começa por dirigir-se ao facto de que alguém com responsabilidades governativas na última década — primeiro como assessor de Theresa May no Ministério do Interior, depois em Downing Street — tenha contribuído para elevar o debate político-partidário com um livro de indubitável seriedade intelectual.
Subscrevo inteiramente este elogio de The Economist à seriedade intelectual de Nick Timothy. Tive aliás ocasião de elogiar aqui no Observador o civismo da sua participação num debate em Oxford sobre o Brexit, após o referendo de 2016.
Mas receio ter de exprimir sérias reservas ao argumento central de Nick Timothy, ou, pelo menos, à terminologia que utiliza. Parece-me algo deslocado escolher o termo “ultra-liberalismo” para designar o adversário principal de um “conservadorismo renovado” — sobretudo nos tempos que correm, mas também em geral.
Em primeiro lugar, parece-me largamente contra-intuitivo. O que tem crescido no panorama intelectual e político britânico (bem como no norte-americano) são novas formas de colectivismo estatista, bem patentes na hostilidade contra as economias de mercado ocidentais — expressa por Jeremy Corbyn, por Bernie Sanders e pelas patrulhas ideológicas dos estudantes “woke”. Esse coletivismo estatista foi aliás retumbantemente derrotado nas urnas no Reino Unido e parece ir no mesmo caminho nos EUA.
Em segundo lugar, e mais fundamentalmente, não é seguro que Nick Timothy tenha captado com exactidão a natureza e a história distintivas do conservadorismo britânico. Diz ele que “desde a Revolução Francesa, o papel do conservadorismo tem sido o de actuar como correctivo contra os extremos do liberalismo.” A ser assim, teríamos de caracterizar Robespierre e Napoleão, por exemplo, como expressões de “extremos do liberalismo”. Talvez a expressão mais adequada fosse aqui de novo “colectivismo estatista” (à semelhança, curiosamente, dos acima citados Jeremy Corbyn, Bernie Sanders e dos estudantes “woke”).
Em contrapartida, devo exprimir a minha simpatia para com a defesa por Nick Timothy do estado-nação e dos Parlamentos nacionais, bem como daquilo que designa por “capitalismo cívico” (isto é, com interiorizado sentido pessoal de dever, que Karl Popper me ensinou a designar por “gentlemanship”). Ambos estão de facto associados à tradição do conservadorismo britânico moderno, desde pelo menos Edmund Burke (que aliás foi toda a vida um deputado liberal).
Mas isso em parte deve-se a que essa tradição conservadora britânica nunca colocou como principal adversário o liberalismo — ao contrário, aliás, de boa parte da tradição conservadora continental que fez do liberalismo o seu principal adversário (e por isso gerou autoritarismos estatistas de sinal contrários). Sobre isto escreveu Alexis de Tocqueville — um católico francês, aristocrata e liberal — páginas inesquecíveis. Que talvez possamos revisitar numa próxima proposta de “Leituras para Casa”.
Até lá, “Stay Safe; Keep Calm and Carry On”.