Como referi no texto de sexta-feira passada, o debate pela liberdade de expressão deve ir muito além do domínio estritamente legal e das acções do Estado enquanto promotor ou censor desta liberdade. Afirmei ainda que a maioria dos debates sobre o direito à liberdade de expressão nas sociedades democráticas são questões de cultura, não legais. É perfeitamente possível que seja inteiramente legal cancelar um determinado discurso ou palestra, mas que tal não seja eticamente desejável, sensato, ou até benéfico do ponto de vista dos objetivos políticos dos intervenientes. É sobre esses dilemas, hoje em voga, que quero falar nesta segunda parte.

Um dos problemas nas discussões actuais sobre liberdade de expressão é a falta de clareza sobre o que esta significa. Teresa Bejan, professora em Oxford, e pensadora sobre questões de tolerância e liberdade de expressão, escreveu num artigo lúcido e esclarecedor que, na verdade, a liberdade de expressão é, e sempre foi historicamente, um conceito duplo. Significa duas coisas distintas.

Um dos conceitos da liberdade de expressão refere-se ao direito igual de todos participarem no debate e na esfera pública. O outro conceito de liberdade de expressão refere-se ao direito de um indivíduo dizer aquilo que quer – uma licença ampla para dizer que “o rei vai nu”. São duas faces distintas da liberdade de expressão. É possível que duas pessoas, com argumentos completamente distintos, digam que estão a defender a liberdade de expressão, referindo-se a coisas completamente diferentes. Assim, não é surpreendente que as discussões se tornem em espectáculos em que as partes estão aos berros umas com as outras, sem se ouvirem ou entenderem mutuamente. Estão a falar com conceitos e perspectivas diferentes.

Historicamente, alguns realçaram uma das dimensões enquanto outros preferiram a outra face. Hoje, a maioria dos debates sobre a denominada “cultura de cancelamento” são, na verdade, sobre a tensão entre estas duas faces. Quem deseja cancelar frequentemente argumenta que o discurso em questão prejudica o direito à igual expressão de todos na esfera pública, pois prejudica a capacidade cívica de variadas minorias ou grupos historicamente oprimidos, ao reforçar estigmas ou ódios. Um exemplo claro desta perspectiva é a visão de Paulo Côrte-Real, ex-Presidente da ILGA Portugal, que recentemente escreveu: “Querer evitar propagar preconceitos que atiram várias pessoas para o fundo da escala de poder não é equivalente a querer calar quem quer pôr em causa o poder e as pessoas que detêm o poder. Num caso, a luta é de baixo para cima; no outro, é de cima para baixo.”

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Por outro lado, quem deseja que não se cancele, argumenta com a outra face: que a liberdade de expressão é a licença para se dizer o que queremos, independentemente da popularidade do que é dito. Um proponente prolífico desta perspectiva é Ricardo Araújo Pereira, que recentemente afirmou, “Eu acho que pressões para que alguém se retrate de uma opinião, a existirem, são ilegítimas. Não interessa muito quem é a pessoa em causa ou quem é que exerce as pressões.” E, quando confrontado com o argumento de que a liberdade de expressão pode ser nociva para os direitos das minorias, responde que nega tal oposição pois “A liberdade de expressão sempre foi instrumental para as minorias. Muitas vezes, as reivindicações das minorias são [consideradas] ofensivas.”

Note-se que Paulo Côrte-Real e Ricardo Araújo Pereira estão a falar de coisas diferentes: um está a falar da liberdade de todos participarem, em pé de razoável igualdade; o outro está a falar da liberdade de um indivíduo que participa no debate público poder dizer o que quiser. (Para os interessados, em termos técnicos, um está a utilizar a isegoria e outro está a utilizar a parrhesia, na nomenclatura apresentada por Bejan e inicialmente proposta por Michel Foucault numa série de palestras proferidas em Berkeley sobre o tema, em 1983).

Num mundo ideal – ou, pelo menos, no meu mundo ideal – seria possível juntarmos ambos os conceitos num único conceito de liberdade de expressão muito amplo: todos têm o direito igual de dizer publicamente aquilo que querem, sem restrições de participação nem de discurso. É essa junção que a Primeira Emenda à Constituição Norte-Americana, considerada uma das mais liberais normas constitucionais em termos comparados, tenta fazer. No entanto, creio que, em grande parte dos casos, esse ideal é isso mesmo: um ideal, que nos deve orientar, mas que não é possível de concretizar completamente. Por várias razões. Primeiro, porque a grande maioria dos “casos” que hoje suscitam debate são casos nos quais a lei não está em causa (e não deve estar: nem tudo deve ser regulado e legislado). Em segundo lugar, porque frequentemente se referem a temas que despertam clivagens profundas, como o racismo, a violência do passado, o ódio ou a identidade pessoal de cada um de nós. É um facto histórico que, no passado, alguns grupos sociais foram colocados no fundo da hierarquia social devido às suas características ascriptivas e que os remanescentes desse passado se fazem sentir, muitas vezes, na hierarquia social dos dias de hoje. No entanto, não é irrelevante que, actualmente, a norma legal e social vigente seja a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, pelo que não tem sentido discutirmos como se o Estado ainda estipulasse hierarquias sociais formais. Também é um facto histórico que, geralmente, quem quis restringir a liberdade de expressão fê-lo porque queria preservar certos valores normativos, como a dignidade, a segurança, a moralidade, o bem comum, a civilização, etc. Mas, citando Bejan, geralmente não é avisado tornar a liberdade de expressão uma licença concedida por uns a outros, condicionada a uma série de requisitos, porque “quando os direitos de todos se tornam o privilégio de apenas alguns, nem a liberdade nem a igualdade podem perdurar.”

Creio que o melhor que podemos fazer é tentar manter uma norma de liberdade de expressão ampla que não sacrifique em demasia quaisquer umas das pernas distintas que apontei em cima. Mas temos de ser rigorosos na análise de cada caso. Em geral, a norma deve estar do lado da liberdade e ônus sobre se esta realmente fere a capacidade de igual participação de cidadãos na esfera pública deve estar sobre quem a quer restringir.

Recentemente, um caso interessante ilustra bem os conflitos em causa, mas também uma resolução que considero sensata e adequada. No passado dia 9 de Março, o juiz federal norte-americano Kyle Duncan, um homem conservador, com algumas visões polémicas e nomeado para o cargo por Donald Trump, foi convidado para proferir uma palestra na Stanford Law School, uma das mais prestigiadas escolas de direito norte-americanas. Note-se que esta palestra não era no âmbito de uma unidade curricular, não era obrigatória e nem sequer era a convite da própria escola. Era, sim, a convite de uma organização de estudantes da universidade chamada Federalist Society, uma organização estudantil conservadora e de âmbito nacional, com capítulos em quase todas as faculdades de direito do país. É uma organização com imenso poder informal porque, num país onde grande parte das nomeações judiciais são feitas por políticos, é considerada a grande “fornecedora” de futuros juízes para a ala conservadora.

No entanto, um grande número de alunos liberais da universidade decidiu aparecer na palestra e protestar enquanto o juiz falava. Claro que protestos visuais, como cartazes ou outras manifestações, não têm qualquer problema e estão dentro do livre direito de todos nós. O problema é que um grande número de alunos começou a protestar gritando e falando por cima do orador a ponto de ele já não conseguir falar. Após alguns minutos sem conseguir falar, o juiz pediu à vice-reitora para a diversidade e igualdade da escola, que estava presente na sessão, para que pusesse alguma ordem na sala para que ele pudesse proferir a palestra para a qual foi convidado, deixando que questões e o debate fosse posteriormente efectuado. Em vez de o fazer, a vice-reitora decidiu proferir um discurso de vários minutos, um discurso que havia sido claramente preparado uma vez que posteriormente foi publicado como texto de opinião no Wall Street Journal, argumentando que o próprio acto do juiz ali falar prejudicava e atacava os direitos de vários alunos de diversas comunidades da escola (presumivelmente direitos de minorias) e que, na sua opinião, “the juice is not worth the squeeze”: o incómodo que ele causava ao falar não era justificável face aos possíveis benefícios de alguém ouvir a sua palestra. Finalmente, quando acabou o seu discurso, lá disse aos alunos para eles se acalmarem e o deixarem terminar.

Notem-se, mais uma vez, ambas as posições. Os alunos argumentam que as posições e actividade profissional do juiz prejudicam a vida de muitos deles e de muitos cidadãos da comunidade LGBTQ+, deteriorando a capacidade cívica destes, inclusive na esfera pública. Isto é, argumentam que é necessário “cancelar” o juiz porque ele deteriora uma versão da liberdade de expressão: todos poderem participar em pé de igualdade no debate. O juiz argumenta que ele tem o direito de proferir uma palestra expressando as suas opiniões e visão ideológica, mesmo que estas sejam impopulares em Stanford.

Neste caso, mesmo sendo eu uma opositora política do juíz, a lei está claramente do seu lado. A Universidade de Stanford, embora sendo uma universidade privada, é localizada na Califórnia, um Estado cuja lei obriga todas as universidades, mesmo se forem privadas, a cumprirem as mesmas regras sobre liberdade de expressão que são aplicáveis em instituições públicas (uma lei sensata). A jurisprudência norte-americana diz claramente que utilizar gritos e importunações continuadas para impedir o outro de falar não constitui um discurso protegido pela liberdade de expressão, especialmente considerando que este não era um evento obrigatório ou um fórum público.

Mas e a cultura também deve estar do lado de deixar este juiz falar num evento com estas características? Alguns estudantes argumentam que, sendo perfeitamente permitido e possível convidar o juiz, eles têm o direito de lutar para que a sua escola não o faça. E que o convite ao juiz (feito, não esqueçamos, por alunos da mesma universidade), não sendo um evento essencial a nada, era desnecessário.

Como mulher, não tenho problema em que existam eventos organizados por indivíduos machistas ou com uma visão patriarcal da sociedade, que este possam debater entre si e que terceiros possam ir lá e debater com eles. Também não tenho problema em proferir um argumento que desfaça a argumentação desses indivíduos, caso seja necessário. Mas não me parece sensato argumentar que um evento de carácter não obrigatório, de uma minoria na sociedade, num país onde o Estado se rege por uma norma de igualdade entre sexos, esteja realmente a danificar a minha capacidade de livre expressão na esfera pública em pé de igualdade com os homens. Mais, é perfeitamente possível e adequado convidar outros oradores, com pontos de vista diferentes, para eventos alternativos. Também não me choca se activistas variados protestarem, dentro dos limites sensatos do protesto, quando esse evento acontecer (embora eu própria não me daria a esse trabalho face à importância da coisa).

No entanto, penso frequentemente: mesmo que legal, será que é desejável construirmos uma sociedade onde cada vez mais pessoas dizem “não conseguir” ouvir argumentos contrários, pois tal constitui uma violência? Será desejável construirmos uma sociedade em que construímos espaços segregados por orientação ideológica e onde só frequentamos o nosso próprio espaço? Universidades liberais só convidarem oradores liberais e universidades conservadoras só convidarem oradores conservadores? Não me parece desejável. A reitora da Stanford Law School, a professora de direito Jenny Martinez escreveu uma bela carta aberta aos alunos a defender a liberdade de expressão de forma sensata. A certa altura, escreve, “Acredito que o foco nestas acções [de cancelamento] como marca de um ambiente “inclusivo” pode levar à criação e imposição de uma ortodoxia institucional que não só vai contra o nosso compromisso fundamental com a liberdade académica, mas também criaria uma câmara de eco que não prepararia adequadamente os estudantes para se tornarem profissionais competentes numa sociedade onde há discordâncias profundas em muitas questões importantes. Alguns estudantes podem sentir que alguns pontos de vista não devem ser discutidos e que, portanto, não têm a responsabilidade de os debater (ou mesmo que não têm de ouvir alguns argumentos), mas, por mais atraente que essa posição possa ser noutro contexto, ela é incompatível com a educação que deve ser ministrada numa faculdade de direito.” Concordo com Martinez e penso que a posição se aplica, como cultura, não só a universidades como a muitos outros espaços. É perfeitamente possível mantermos um ambiente pluralista, onde todas as minorias sejam bem-vindas e tenham iguais direitos, mas onde todos (ou quase todos) os pontos de vista também possam ser debatidos.

Nem todas as posições e argumentos que não gostamos de ouvir são “ilegítimos” ou “discurso de ódio”. A maioria não são. Da mesma forma, nem todos os protestos que recebemos são um ataque à nossa liberdade de expressão, como muitas vezes argumentam os receptores desses protestos. Na verdade, a maioria também não o são. Não nos deixemos seduzir pelo excesso. Até porque, se todos os argumentos forem ilegítimos ou um ataque à nossa liberdade de expressão, não resta espaço para debatermos.