O que mais impressiona na história do diálogo entre uma amiba flutuante e um tronco de jangada à deriva que foi o embate sobre o anúncio do futuro aeroporto de Lisboa entre António Costa e Pedro Nuno Santos é a absoluta falta de pensamento dos protagonistas. Dizer isto não é, de modo algum, acusá-los de falta de inteligência. Tudo, pelo menos no que a Costa diz respeito, aponta no sentido contrário. Infelizmente, o que há mais neste mundo é gente esperta – e não uso a palavra em sentido pejorativo – sem pensamento.

Como Costa fez tudo – ainda ontem, na Assembleia da República, o voltou a fazer: “erro grave, mas efémero”, chamou-lhe – para silenciar o episódio, convém lembrá-lo. O ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, decidiu no outro dia apresentar ao país perplexo a solução que o Governo, segundo ele, havia tomado para responder a um problema velho de décadas: a construção do novo aeroporto de Lisboa. O novo aeroporto não seria, de resto, um só, mas dois. Como não há fome que não dê em fartura, haveria um em Montijo, outro em Alcochete. A coisa, explicou em várias entrevistas televisivas nessa mesma noite, estava já despachada e a caminho do Diário da República. Com voz grossa, aquela que usou há anos para declarar que faria “tremer as pernas dos banqueiros alemães”, explicou que nem o Presidente da República nem o novo líder da oposição, Luís Montenegro, precisavam de ser informados da decisão. O facto estava consumado.

Acontece que, aquando da comunicação ao país de tão relevante decisão, que envolve, além de tudo, uma batelada de dinheiro que não se conta, António Costa se encontrava numa cimeira da NATO, em Madrid, e, ainda por cima, por razões protocolares de segurança, incapaz de contactar com o mundo exterior através do telemóvel. Se acrescentarmos a isto, que já é estranho, o facto do mesmo António Costa ter repetidamente declarado, a última vez muito recentemente, que a decisão sobre o novo aeroporto só teria tomada em articulação com Luís Montenegro, a estranheza atinge proporções inéditas. Parecia um golpe de Estado.

Ao próprio Costa, aparentemente, pareceu. Porque, na manhã seguinte, estando ele ainda em Madrid, o seu gabinete fez saber, num comunicado particularmente duro, que o despacho do ministro havia sido revogado. Por outras palavras, fez saber que o chefe era ele e que o ministro tinha agido contra a sua vontade, em plena insubordinação. E, já de regresso a Lisboa, esteve cerca de uma hora reunido com Pedro Nuno Santos. Atendendo ao curso dos acontecimentos, toda a gente, sem excepção, deu de barato que o ministro se demitiria ou seria demitido.

Não foi, no entanto, isso que aconteceu. Saído da reunião, o ministro deu uma extraordinária conferência de imprensa, sem direito a perguntas, onde procedeu ao maior exercício de auto-humilhação de que há memória em democracia. Não houve imbecilidade ou falha de caracter que não tivesse generosamente atribuído a si mesmo. O homem das pernas a tremer dos banqueiros alemães pôs-se de cócoras. E, para acrescentar repugnância à repugnância, abjecção à abjecção, desfez-se em loas a António Costa, jurando-lhe amor eterno e absoluta servidão. Ele era um estouvado, um verme da terra, que traíra a confiança do extraordinário ser de luz que amava como Isolda amou Tristão, Julieta Romeu e um general norte-coreano Kim Jong-un. Via-se e não se acreditava. O ministro rastejante continuava ministro à custa de rastejar.

É impossível a um leitor d’Os Maias não se lembrar aqui do extraordinário Dâmaso Salcede. Recordar-se-ão que, depois de ter descoberto que Dâmaso Salcede havia sido o autor de um artigo da “Corneta do Diabo” onde se falava em termos torpes da sua relação com Maria Eduarda, Carlos da Maia envia João da Ega e Cruges a casa de Dâmaso, colocando-o perante uma alternativa: ou um duelo com Carlos ou uma carta onde Dâmaso pedisse de forma clara e inequívoca desculpa por ter escrito o artigo em questão. A hipótese do duelo não se coloca para Dâmaso, que acaba, para se salvar daquilo que designa por “entaladela”, por aceder à solução da carta. É João da Ega que a redige. Nela, Dâmaso confessa que escreveu o artigo, um pocinho de falsidades e incoerências, em estado de completa embriaguez. Essa embriaguez é, de resto, o produto de uma tara hereditária. Daí ser uma situação que lhe acontece amiúde e que corre o forte risco de se repetir no futuro, pelo qual pede antecipadamente desculpa. De mão tremente, depois de lida a carta, Dâmaso assina, aliviado, e, no íntimo, já pronto para o próximo “Chique a valer!”.

A conferência de imprensa de Pedro Nuno Santos é o perfeito análogo desta carta. E, tal como Carlos da Maia com nojo a aceitou, também António Costa, depois da conferência, declarou, mas aparentemente sem nojo algum, que, no fundo, o bom Pedro agira sem má-fé e fora humilde – um bom rapaz, no fundo, que reconhecera ser um bocado estouvado.

É claro que, além da questão da auto-humilhação, toda a gente se pôs a especular sobre as razões que teriam levado Costa a não demitir o ministro. Estaria ele antecipadamente a par da intempestiva intervenção deste naquele dia fatídico, tendo recuado, por uma razão ou outra, à última hora? Teria Costa medo da liberdade de acção para a crítica ao Governo de que Pedro Nuno Santos gozaria se Costa o demitisse? E por aí adiante.

São, é claro, questões legítimas. Mas a mim o que me parece mais digno de ser notado é a abissal falta de pensamento que engendra o vazio no qual se desenrola toda esta sórdida gesticulação. E, por isso, permito-me voltar ao que escrevi no primeiro parágrafo. Nem Costa nem Pedro Nuno Santos têm um real pensamento sobre Portugal. Têm truques e chavões, e, no vazio criado pelos truques e chavões, têm ambições. Depois, é uma luta em que nem os derrotados nem os vencedores se permitem perder tempo com a nobreza, ou sequer a decência, que apenas as convicções permitem. Nada mais natural que o resultado de uma tal situação seja grotesco.

Indo mais fundo. Não convém confundir pensamento com uma doutrina fixa sobre a sociedade, que traga consigo a receita mágica para curar, ou pelo menos remediar, os males de que possa padecer. Nem com a habilidade em encontrar argumentos sempre à mão para justificar o que a necessidade, em particular a dura necessidade do nosso interesse pessoal, nos obriga a fazer. Se assim fosse, António Costa e Pedro Nuno Santos teriam indiscutivelmente pensamento próprio.

O problema é que ter uma doutrina fixa da sociedade, qualquer que ela seja, é fatalmente mutilante. O modo de ser da sociedade não se deixa capturar por uma doutrina única. E é por isso que as controvérsias políticas não conhecem fim, não acabam, mesmo que apenas provisoriamente, por um acordo – que vai além do mero consenso, forçosamente subjectivo – em torno de certas interpretações dos factos, como acontece com as controvérsias científicas. Não há, por exemplo, e é um exemplo significativo, acordo generalizado sobre o que é, política e filosoficamente, a justiça. Por isso, uma visão monolítica e unívoca da sociedade repugna instintivamente a quem se atreva a pensar um pouco.

Do mesmo modo, a mera habilidade em encontrar argumentos que forneçam a aparência de uma justificação para as nossas crenças do momento não vale também como pensamento. Se a posição anterior escolhe um universal arbitrário como se fosse incondicionado e absoluto, com grande desprezo pela realidade empírica, o truque da habilidade consiste em ir saltitando de particular para particular, dando-se grandes ares de princípios que o mais desprevenido dos olhares vê serem puras ficções destinadas a simular uma coerência que, no melhor dos casos, não é senão a coerência do interesse próprio.

Por isso, o embate da amiba e do pedaço de madeira no meio do oceano mostrou o vazio em todo o seu esplendor. Não havia ali, de parte e de outra, o mais leve vestígio de pensamento político, de expressão de um genuíno sentimento do que deve ser a sociedade e do caminho a seguir para que ela seja como a desejamos. Para que tal acontecesse, seria necessário que houvesse um pequeno número de convicções firmes – quanto menor fosse o número, melhor – e que essas convicções pudessem conviver com aquilo que um poeta chamava “a rugosa realidade a abraçar”, correndo obviamente o risco de incoerências parciais. Não pode haver pensamento político – ou, já agora, ético – digno desse nome que não comporte incoerências e acomodamentos circunstanciais. Deus nos livre dos pensamentos políticos – ou éticos – absolutamente coerentes. Conduzem inevitavelmente a catástrofes. Há, nesta matéria, como lembrava o filósofo polaco Leszek Kolakowski, todo um elogio da inconsistência que é, ou devia ser, de regra. O verdadeiro juízo político não dispensa essa condição.

À falta dessas condições, só resta a vacuidade. O debate sobre o aeroporto, se mostrou alguma coisa para além da luta pelo poder no interior do PS que logo entusiasmou aficionados de vária pinta, mostrou essa vacuidade de forma indubitável. O grotesco daqueles que vivem perpetuamente a evitar vários tipos de “entaladelas” é o resultado directo da ausência de qualquer pensamento político digno desse nome, como coisa distinta do uso e abuso de chavões e truques.

Se o PSD de Montenegro quiser ser, de facto, a oposição que promete vir a ser, fazia-lhe bem olhar para aquilo e perceber que é o oposto daquilo que deve ser. O oposto do dogmatismo – sincero ou não, não interessa, mas certamente primitivo – e do oportunismo. Poucos princípios, mas firmes, e o máximo de liberdade que esses princípios permitirem. As pessoas, aposto, iam gostar de encontrar gente que defendesse isso pela frente. E que, de caminho, lhes poupasse a exibição dos espectáculos deprimentes como este do aeroporto. O país não precisa de Dâmasos Salcedes redivivos e a melhor maneira de evitar que eles apareçam é a criação de um ambiente político onde o oportunismo e a pura ideologia não gozem de uma liberdade ilimitada, aliando-se e opondo-se segundo as circunstâncias.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR