Há dias, Lonnie G. Bunch III, um reputado historiador norte-americano que passou grande parte da sua carreira ligado a museus e que dirige, actualmente, o Instituto Smithsonian, esteve em Portugal para nos falar de navios negreiros naufragados e para incentivar os museus nacionais a  desempenharem um papel activo no debate em torno da memória da escravatura e da colonização. Fiquei com a ideia de que é um homem razoável e equilibrado, que da mesma forma que veio a Lisboa falar de um traficante de escravos português, foi ao Gana dizer aos ganeses que eles “tinham construído o seu poder e feito a fortuna com a venda de outros africanos”. Bunch fez uma conferência na Culturgest e falou igualmente no Museu Nacional de História Natural e Ciência. Não o ouvi em nenhuma dessas ocasiões, mas fui seguindo os ecos da sua presença entre nós pois a sua vinda a Portugal mereceu destaque em vários jornais e deu, até, lugar a entrevistas, a mais interessante das quais, julgo, foi a que concedeu a Leonídio Paulo Ferreira, o director-adjunto do Diário de Notícias.

Todavia, nessa entrevista, Lonnie Bunch propagou três ou quatro informações historicamente erradas, o que é surpreendente num homem da sua craveira. Sendo-lhe perguntado pelo director do DN se a diferença entre “a escravatura europeia dos africanos” e a que “acontecia em todos os países e em todos os tempos” se baseava principalmente na questão da raça, Bunch respondeu que havia “duas grandes diferenças” entre a escravatura desenvolvida no mundo atlântico e as outras: “a primeira é porque tinha maioritariamente a ver com a raça e (a segunda é porque) era permanente. A escravatura antiga era uma consequência da guerra, as pessoas eram feitas cativas, mas depois de um certo tempo eram libertadas e podiam ser reintegradas na sociedade. O comércio de escravos (feito pelos europeus) tinha verdadeiramente a ver com a cor da pele e com a permanência (…)”.

Esta resposta deixou-me perplexo por várias razões e desde logo porque a escravatura de africanos feita por europeus não era necessariamente permanente ou perpétua. Terá sido frequentemente assim nos EUA, onde a manumissão, ou seja, a libertação a título individual de escravos, foi durante muito tempo fortemente dificultada, mas noutras colónias europeias nas Américas havia manumissões e muitos escravos eram libertados, fosse por acções meritórias em combate ou como recompensa de serviços prestados e de relacionamentos sexuais/afectivos, fosse porque compravam a própria liberdade. Isso acontecia no Brasil sob administração portuguesa e nas colónias de outras nações. Pense-se, a título de exemplo, que mesmo nas colónias francesas, onde as relações entre senhores e escravos eram regulamentadas pelo famoso Code Noir, o senhor que tivesse filhos de uma escrava era obrigado a libertá-la bem como à sua prole, o que gerou uma numerosa população de afro-descendentes livres. Para se fazer uma ideia da sua dimensão bastará saber que em 1791 havia na colónia de Saint-Domingue (futuro Haiti) perto de 30 mil negros e mestiços livres, que os franceses designavam por gens de couleur, isto é, uma população quase tão numerosa como a dos brancos. Claro que, tudo somado, os libertados — sobretudo mulheres e crianças — eram uma pequena minoria numa multidão de escravos, mas ainda assim suficientemente numerosa para impedir que se diga que a escravatura dos africanos nas Américas era permanente ou perpétua. Não o era, ou melhor, nem sempre o era.

Os outros enganos de Lonnie Bunch dizem respeito à escravatura antiga. É muito redutor afirmar — como afirmou — que essa escravatura era “uma consequência da guerra.” Na verdade era, também, consequência do endividamento e, sobretudo, do abandono de crianças na infância. Dito de outra forma, a escravatura antiga tinha várias fontes de abastecimento, tal como sucedia em África, onde a guerra era um dos métodos para obter escravos, método que árabes e europeus viriam a aproveitar e estimular. A esse nível não havia, portanto, diferença substancial entre a escravatura antiga e aquela que se desenvolveu no mundo atlântico.

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Engano, ainda, é considerar, como Bunch fez, que, na Antiguidade, “depois de um certo tempo (as pessoas escravizadas) eram libertadas e podiam ser reintegradas na sociedade.” Acontecia, de facto, mas essa não era a norma. Na Grécia Antiga quase não há registos de manumissões de escravos rurais ou dos que trabalhavam nas minas e algo de equivalente se passava no mundo romano. É verdade que, aí, e sobretudo nas cidades, as manumissões terão sido proporcionalmente bem maiores a ponto de ter havido a necessidade de as regulamentar e de lhes impor limites, mas é errado pensar, como parece ser o caso de Bunch, que a totalidade ou, até, a maior parte dos escravos fosse libertada.

Ou seja, não é a perpetuidade — ou permanência, como Bunch lhe chama — que distingue a escravatura atlântica de outras formas, nomeadamente das que existiram na Antiguidade. Em ambos os casos havia perpetuidade e havia, também, libertações. A diferença mais significativa é — ou passou a ser, a partir de certo ponto — de natureza racial, visto que nas colónias europeias nas Américas a esmagadora maioria dos escravos vinha da África negra, ou reproduzia-se internamente a partir de populações daí provenientes. Na generalidade dos outros casos, os senhores tinham escravos de várias raças; outras vezes escravos e senhores eram da mesma raça ou, até, da mesma cultura (ou de culturas aparentadas). Nas Américas geralmente não, e isso introduziu uma componente que levaria, depois, infelizmente, ao desenvolvimento de estereótipos muito negativos a respeito dos negros.

Não se pense, porém, que isso foi uma criação exclusiva  do perverso cérebro do homem ocidental. As ideias negativas, francamente pejorativas, relativamente aos escravos negros — que, depois, no mundo ocidental, evoluiriam para o racismo dito científico —, encontram-se, também, no mundo muçulmano, mundo esse que — nunca é demais lembrá-lo — foi o primeiro a recorrer massivamente à exploração de milhões de escravos da África subsariana e o primeiro a associar a cor negra às formas mais degradantes de trabalho e de sujeição. Os escravos zanj — que correspondem a pessoas da costa oriental africana — são descritos, em textos árabes, como os mais irresponsáveis e os menos inteligentes de toda a humanidade. A palavra escravo, em árabe (‘abd), tornou-se com o tempo, e em certas regiões, sinónimo de negro. E não esqueçamos que Ibn Khaldun, o grande historiador tunisino do século XIV, escreveu que os negros “tinham pouco que fosse essencialmente humano e tinham atributos bastante semelhantes aos dos mais estúpidos animais.” Não há dúvida de que a chegada ao mundo muçulmano de grandes números de pessoas da África subsariana originou uma forma precoce de racismo que não evoluiu nem se estruturou da mesma forma que no Ocidente por diversas razões, mas que existia e deixou provas dessa existência na documentação.

Em suma, mesmo no que respeita aos preconceitos de ordem racial a escravatura atlântica não foi única. Bunch sabe certamente tudo isto, como eu também sei. Como entender, então, estes seus enganos? A ideologia woke é poderosa nos Estados Unidos da América e tem capacidade para arrastar e influenciar mesmo as pessoas equilibradas, objectivas e imparciais. Apesar de ser historiador — ou, talvez, por causa disso — Bunch caiu nas deformações típicas do wokismo. Por que razão o digo? Em primeiro lugar porque generalizou a partir da história da escravatura nos EUA, aplicando esse molde à história das outras colónias ou ex-colónias europeias. Ora, o modelo norte-americano, sobretudo o do Deep South (o Alabama, o Mississipi, etc.) não se adequa a outras realidades, mas é típico do wokismo querer metê-lo à força nessas realidades. Em segundo lugar porque Bunch sublinhou a ideia de que a escravatura atlântica era pior do que todas as outras — ideia que o wokismo usa para acentuar (e jogar com) o sentimento de culpa dos ocidentais. Naquela  breve passagem da sua entrevista está a ilustração perfeita de um dos métodos do wokismo, no que toca à escravatura: agravar, isto é, tornar ainda mais pesadas, as já de si terríveis características do tráfico transatlântico e da escravidão nas Américas e, ao mesmo tempo, omitir ou aligeirar muitíssimo as penosas características de todas as outras.

Já escrevi várias vezes sobre isto, mas será útil repetir. É provável que a escravidão colonial nas Américas tenha sido, por norma, mais brutal do que as suas congéneres africana ou muçulmana, mas é difícil estabelecer uma hierarquia quanto ao grau de severidade dos vários sistemas escravistas. Mas o que mais importa perceber é que, como Orlando Patterson mostrou num estudo clássico, todos os escravos, em todas as épocas e partes da terra, eram mortos sociais devido ao seu afastamento das respectivas família e sociedade, a que, se não fossem escravos, pertenceriam e que os protegeriam. Aquilo que os caracterizava, a todos, era a vulnerabilidade, com tudo o que implicava de insegurança e de incerteza quanto ao futuro. É essa vulnerabilidade essencial que melhor distingue o escravo do homem livre e que mais o aproxima da condição de animal doméstico. E, desse ponto de vista, desde o escravo que cortava cana numa plantação cubana até ao escravo militar de alta patente do exército mameluco, todos podiam ser vendidos ou mortos, pois eram uma forma de propriedade. Fossem quais fossem os privilégios que um escravo ou escrava pudessem ter adquirido ao longo da sua vida, a verdade é que eles podiam ser instantaneamente cancelados e sem qualquer pré-aviso. Dito de outra maneira, todas as formas de escravidão eram horríveis e o diabo que escolha a mais horrível de todas, mas é interessante que, nestes tempos de wokismo, haja tantos historiadores, americanos e não só, a querer fazer o papel do diabo.