O que quer dizer a palavra Lisboa? Que significa a palavra Lisboa, se a puxamos para título, nem que seja de um capítulo da nossa vida? Sabemos dizer que sim, sim — foi ali, que se deu isto e aquilo, foi aqui que nasci, foi aqui que me ergui, que me casei, é aqui que trabalho, que me apaixonei — mas que quer dizer essa palavra, a que nomeia um lugar, se cada um desses acontecimentos se situa noutro universo paralelo, ao qual apenas só em parte a minha juventude se deu em Lisboa? O que é uma cidade e a palavra que a nomeia, se não apenas o correspondente gramatical entre um ponto no mapa e um ponto num mapa interior, a que ninguém tem acesso? A palavra Lisboa, intitulando um projecto colectivo, ou impressa num texto, ou dentro de um livro. Que quer dizer? E para quem? O que é uma cidade dentro de um texto, de um livro, num poema, numa fotografia, num depoimento, num romance? A Dublin de Joyce? A Ítaca de Homero? Mesmo a Nova Iorque de Frank ou Garry Winogrand?
Lisboa? A quem pertence? Começo no tempo em que ainda não vivia na cidade, mas, sem saber, nas suas franjas. Que era, então, a capital? Habitávamos a margem, mas não o sabíamos propriamente. Sermos suburbanos não era ainda uma medalha, na puberdade, como se tornaria quando tínhamos dezassete anos e o começo de um orgulho de estar na margem. Éramos suburbanos, mas não sabíamos o que era não o ser. Quase não conhecíamos gente da nossa idade que vivesse na cidade. Então, adolescente, apanhava o comboio no intervalo grande entre as aulas da manhã e as aulas da tarde para ir ver montras na Baixa com amigas. Tínhamos pouco mais de duas horas e ninguém nos sabia nessas andanças. Mentíamos. Dizia em casa que ia almoçar a casa de uma e doutra. Na cidade, havia o que não havia perto de casa, botas de plataforma, batom com purpurinas, rímel azul. Sonhava viver ali, perto dos Restauradores, por onde caminhava com a mais plena segurança, mal saía do terminal de comboios. Talvez porque vivia longe, a cidade era mais uma projecção do que um existente concreto. Ali, poderia um dia vestir o que quisesse, pintar o cabelo, palmilhar a calçada de sapatos de salto alto vermelhos. Ali, enfim, o paraíso com que sonhava no meu quarto, o fim dos adultos ou de ter de lhes prestar contas, o fim dos exames e das aborrecidas explicações de matemática, o fim de não ser senhora de mim.
Haverá modos diferentes da classe e da etnia para definir as condições da pertença, mas estes não podem escamotear que, para muitos entre nós, Lisboa não é o seu lugar. Recordo-me de conversar com um amigo da Quinta do Mocho, passeávamos pelo Chiado, e de, apontando à arquitectura pombalina, ele me dizer que as fachadas, “Lisboa”, “isto tudo” lhe metia “medo” e o faziam querer regressar ao bairro onde vivia. Onde ficará o seu bairro, se não fica em Lisboa? Num espaço-cápsula, algures na margem, a partir do qual a noção que se tem do centro se parece com a que alguém do centro tem de outro continente. Não é apenas não ser daqui — não pertencer à sua cidade — é antes não ser de lado algum, porque não existe um lugar onde regressar, que satisfizesse a procura por uma casa. Aquilo de que é privado alguém cuja circunstância de vida seja não ter um lugar é a negação de um projecto de vida e das condições de prosperidade da vida material e imaterial, constitui uma quebra no mapa interior, que referi acima.
A diversidade dos grandes centros, que testemunhamos nas ruas, esmorece assim que entramos nas repartições públicas, somos atendidos nos hospitais, entramos na sala de aula. Se os imigrantes se encontram na base da pirâmide — nas caixas de supermercado, nos cantoneiros que limpam as calçadas, nos homens que asfaltam as estradas, nas mulheres que aspiram os escritórios, nos homens que sobem às gruas — e não os vemos nesses lugares; se rareiam no ensino, na administração pública, nos hospitais, nas empresas, nos tribunais, nos jornais, não podemos, todavia, inferir da sua sub-representação nesses sectores que a sociedade portuguesa não é múltipla e diversa. Pouco os vemos, não estão à vista, terminam o turno antes de entrarmos no expediente, regressando aos seus bairros. Para os vermos, basta entrarmos num comboio a caminho de qualquer subúrbio, deslocarmo-nos um pouco para fora do centro. O Portugal que deparamos ao sair da carruagem é múltiplo, pluri-religioso e, além do mais, empobrecido.
Nesse país, os imigrantes não vivem necessariamente apartados dos portugueses nem em condições necessariamente piores. Vivem igualmente mal, com a agravante de, quem sabe, não se reconhecerem como parte do todo que habitam. Afastados do centro, distantes dos símbolos nacionais, vivem, trabalham e pagam impostos num país que não sentem exactamente seu, nas franjas de uma cidade que não reconhecem, na medida em que não se imaginam chamados às decisões que a governam (no que estão a par, porventura, de muitos portugueses).
Seria desejável que este conflito fosse resolvido de um modo mais natural pelos seus filhos e, em geral, pelos mais jovens, para quem certas angústias de pertença dos seus pais não fazem hoje tanto sentido. O período colonial não o viveram. Ao racismo respondem, hoje, com uma ousadia que os seus pais e avós não se admitiriam. Neste e noutros títulos, os mais jovens vão adiante, encaram com naturalidade a amizade e a paixão entre diferentes, são um exemplo da superação de muitos preconceitos. Olhando para os seus representantes, todavia, para a classe política, ou para a imprensa, as figuras cimeiras qualquer que seja a área, as celebridades além da música ou do desporto, raramente os pais desses jovens surpreendem exemplos que orientem a educação dos seus filhos, no sentido de imaginarem para eles um futuro de concretização plausível.
Os mesmos jovens, filhos de imigrantes, eles mesmos portugueses — com que sonham, se não têm como indicar se não escassos exemplos de vida com que possam equiparar-se? Se, para todos os efeitos importantes, os nossos semelhantes são a comunidade humana no seu todo, os nossos sonhos e aspirações de vida precisam, ainda assim, do alimento do reconhecimento. O que poderão almejar alcançar jovens como fui no seu curso de vida? Qual a extensão das suas aspirações? Que futuro e que lugar lhes reservamos?