O ano que agora finda foi, acima de tudo, longo. A sua duração parece bem maior do que a simples contagem dos meses aparenta. A pandemia de Covid-19, aliada à falta de expectativas num país cada vez mais pobre e amorfo, tornaram as coisas difíceis. Todavia, os livros são confortos de alma a que podemos regressar. Como vem sendo tradição, escolhi uma lista de livros de Natal, cujo único critério é o prazer.

Lea Ypi: Free – Coming of Age at the End of History. Se tivesse de escolher apenas um livro em 2021, este seria, sem sombra de dúvida, o vencedor indisputado. Professor de Teoria Política na LSE, a autora, nascida numa família com pergaminhos intelectuais e sociais, relata os últimos anos do regime de Enver Hoxha na Albânia. Fluente em Francês aos cinco anos graças à avó, Ypi mostra bem o isolamento a que abjecção do Comunista havia votado o país: no final dos anos 80, Estaline ainda era venerado no país. Ypi acabou por emigrar para Itália onde, depois de se licenciar em Literatura e Filosofia, em Roma, acabou por se doutorar no Instituto Universitário Europeu, em Florença. Um livro notável.

Artur Pastor. Em boa hora António Araújo e a Fundação Francisco Manuel dos Santos decidiram publicar este livro, em parceria com o Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa. Até à edição do livro, confesso que nunca tinha ouvido falar de Pastor, apesar de ter havido uma exposição do seu trabalho em Lisboa há uns anos atrás. Para além de ter dezenas de fotografias sobre portugueses comuns, na cidade e no campo, entre a década de 40 e 90 do século passado, o livro tem ainda um conjunto de textos de enquadramento do trabalho de Pastor na modernização da sociedade Portuguesa.

The Matter of Black Lives: Writing from the New Yorker. Os arquivos da New Yorker estão cheios de pérolas. Depois de um conjunto de livros organizados por décadas, oferecendo o melhor que apareceu na revista nas décadas de 40, 50 e 60, este ano apareceu um livro temático dedicado aquilo que, de forma lata, podemos considerar a experiência afro-americana ao longo das últimas décadas. Cuidadosamente curados por David Remnick, este volume está dividido nas temáticas clássicas da revista, indo da política à arte e passando ainda pelas histórias pessoais. Gosto especialmente do texto de Danielle Allen, Professora de Teoria Política em Harvard, e actualmente candidata às primárias do Partido Democrata para governadora do Massachusetts. Neste texto, Allen compara o seu percurso pessoal com o do sobrinho, preso por um delito menor e, mais tarde, assassinado numa espiral de violência.

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Mário de Carvalho: De Maneira que é Claro. Cada livro de Mário de Carvalho é, para mim, um acontecimento. Este não é excepção. Apresentado como um ‘livro de memórias’, o autor apresenta 96 breves entradas nas quais recorda episódios da sua vida, com especial ênfase para os anos de crescimento, a revolução, e os anos iniciais da vida adulta. O português de Mário de Carvalho é soberbo, com um domínio perfeito do ritmo da frase e a utilização integral do léxico.

Jonathan Franzen: Crossroads. Depois de ter desiludido com Purity, o seu último romance já com alguns anos, Franzen regressa neste livro ao seu melhor estilo. Situado nos subúrbios de Chicago no final dos anos 70, Franzen consegue criar mais uma ‘família’ e, com ela, mostrar as relações sociais na América da sua adolescência. Pegando na vida apenas aparentemente banal dos Hildebrandt, Franzen mostra a negritude que existe por detrás de um pastor, do seu casamento em crise, e a voragem que ambos os filhos enfrentam. Ainda não está ao nível de Rabbit de Updike mas caminha a largos passos para o atingir.

Zuza Homem de Mello: Amoroso – Uma Biografia de João Gilberto. Pouco antes de morrer, Homem de Mello deixou pronta esta biografia do inventor da Bossa Nova. Esta pérola que relata detalhadamente a vida de João Gilberto, desde as origens em Juazeiro, passando pelas temporadas baianas nos anos 50, até à explosão de sucesso nos anos 60 e fechando com as últimas décadas de semi-reclusão. Infelizmente, em Portugal, há maior preocupação com o acordo ortográfico do que com a simples distribuição de livros, apesar das melhorias nos últimos anos com a abertura da Travessa no Príncipe Real. Mão amiga fez-me chegar este livro do Brasil, a quem estou devidamente agradecido.

 José Saramago: Viagem a Portugal. No final dos anos 70, José Saramago escreveu para a Círculo de Leitores uma obra em que relatou longos passeios por Portugal, articulando um quadro interessante sobre o país e as suas gentes. A nova edição dá toda uma nova espectacularidade ao livro, na medida em que inclui, para além do texto original, as fotografias que o próprio Saramago tirou dos lugares por onde foi passando. Olhando para a nova edição e para as suas fotografias, achei muitíssimo curiosa a centralidade que as igrejas e os elementos religiosos têm para um homem convictamente ateu.

Um Feliz Natal!