Viver para sempre é um dos mais antigos desejos – ou, melhor dizendo, um dos mais antigos mitos – da humanidade. A medicina em geral e as ciências biomédicas em particular alimentam de algum modo, se não o mito da vida eterna, pelo menos a esperança de vivermos cada vez mais tempo e com mais saúde. Há provas de que a biomedicina continuará nesse caminho, embora nem todo o aumento da longevidade resulte exclusivamente das ciências médicas. Entretanto, o prolongamento do envelhecimento por cada vez mais tempo não será, em fim de vida, necessariamente mais saudável do que é hoje e não deixará de terminar pela morte.

Quando nasci, a esperança média de vida à nascença de uma criança do sexo masculino era, em Portugal, cerca de 50 anos; hoje está perto de 80. A longevidade das mulheres já então era, em média, superior à dos homens e, hoje em dia, a diferença ainda é maior devido aos ganhos médicos na gravidez e no parto. É evidente, porém, que o ciclo de vida das pessoas, desde as origens sociais à actividade profissional, continua a condicionar fortemente a esperança de vida de cada um segundo a classe social a que pertence.

Da primeira vez que foi feito um estudo aprofundado dos determinantes sociais das desigualdades em saúde e a esperança média de vida a diferença encontrada pelo médico e investigador Michael Marmot entre os estivadores de Glasgow e os altos funcionários de Westminster era de 12 anos!  Hoje ainda será, no mínimo, metade disso entre trabalhadores manuais e intelectuais nos países mais desenvolvidos, para não falar das diferenças do estado de saúde e da longevidade entre países ricos e pobres.

Vêm estes comentários a propósito de uma entrevista publicada no «Público» do dia 24 na qual o biólogo Salvador Macip teria dito que «a imortalidade é biologicamente possível». Dá como exemplo um hidrozoário imortal de nome «hidra», o que na minha ignorância não posso contestar, e acrescenta que «resta saber se um organismo complexo como o nosso pode alcançar a imortalidade», concluindo prudentemente: «Eu não sei»

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O cientista não sabe mas nem por isso deixa de equiparar o fenómeno do envelhecimento a uma doença como o cancro ou a diabetes. Afinal, ao contrário do que pensávamos até aqui, o envelhecimento humano não é um processo universal de duração irregular em que o protagonista acaba por morrer, algumas vezes não se sabe de quê… Segundo o cientista, o envelhecimento seria, como doença que segundo ele é, susceptível de ser curado pela biomedicina como outras doenças têm sido. Em suma, a imortalidade estaria à distância de um medicamento que se trata de descobrir!

Não poderia haver notícias melhores, já que as incidências dos processos de envelhecimento são cada vez mais prolongadas e se repercutem no campo da saúde, ao ponto de estarem a pôr em risco o funcionamento dos serviços de saúde de vários países europeus como Portugal. Infelizmente, não é a primeira – mas sim a enésima vez – que a humanidade procura projectar a sua finitude numa forma qualquer de imortalidade. Foi para isso que se inventaram as religiões, pois pode ser consolador pensar que um deus nos daria a imortalidade… Mas não num medicamento!

O assunto é, porém, sério de mais e é improvável que o cientista em causa faça vaticínios destes apenas a fim de obter financiamento para o seu projecto… Mesmo que a imortalidade não esteja, por assim dizer, numa aspirina especial, o nosso cientista garante que «cada vez veremos mais tratamentos e mais coisas (que coisas pergunto eu?) que podemos fazer… e vamos conseguir parar, atrasar e talvez reverter o envelhecimento». Segundo o Google Scholar, o Doutor Macip tem uma vasta lista de publicações científicas. Possui pois cultura e conhecimentos suficientes para saber que está a pisar um terreno minado.

Falar da «cura do envelhecimento» e, quem sabe, da «imortalidade» exige reler o que a literatura clássica nos deixou a este respeito. Jonathan Swift, conhecido de todos pelas «Viagens de Gulliver» (1726), faz na sua ida a Luggnagg uma «descrição especial dos Strulbrugs», ou seja, os Imortais da ilha. No final da narrativa, o autor diz isto: «O enorme Apetite pela Perpetuidade da Vida que eu antes sentia diminuiu muito. Aumentou a minha vergonha pelas Visões que antes tinha e pensei que nenhum Tirano seria capaz de inventar uma Morte para a qual eu não fugisse com Prazer de tal Vida. O rei de Luggnagg ainda pensou em oferecer-me um casal de Imortais para eu levar para o meu país de modo a armar o Povo contra o Medo da Morte…»! Duzentos anos depois, Jorge Luís Borges («El imortal», Aleph, 1946) pensava o mesmo: os seus Imortais procuram incansavelmente o rio que lhes havia dado a Imortalidade a fim de o atravessarem de novo e morrerem como todos nós…