Confesso que sempre gostei de Macron e da vontade de mudança política que ele representa. França é um país esclerosado com fortíssimas forças de bloqueio que impedem as reformas necessárias para garantir que o país permanece relevante na cena internacional. Um exemplo claro do atavismo de muitas forças políticas em França é a proposta da Nova Frente Popular, que se uniu para disputar as eleições legislativas de 30 de Junho e 7 de Julho, para descer a idade da reforma para os 60 anos. Em 2024, com a pressão demográfica que se faz sentir e o aumento da esperança de vida, uma medida desta natureza revela um mundo mental que já não existe. A Esquerda Francesa não habita o mundo real. De outra maneira, não faria propostas populistas desta natureza.

Apesar da vontade de mudança que Macron trazia desde o início do seu mandato, era mais ou menos evidente que a sua passagem pelo Eliseu dificilmente acabaria bem. Em primeiro lugar, Macron conseguiu fazer-se eleger presidente sobre os escombros do sistema partidário que alicerçava a V República. À excepção do partido de Marine Le Pen, nenhum dos partidos clássicos que estruturaram a política Francesa ao longo dos últimos 60 anos sobrevivem com força suficiente para gerar uma alternativa política ao actual presidente. Apesar da má fama que têm, os partidos políticos são fundamentais enquanto mecanismos de formação de elites, organização do espaço político e capacidade de mobilização dos cidadãos. Só existe uma coisa pior do que maus partidos políticos: o vácuo criado por partidos políticos sem força suficiente para cumprirem a sua função no sistema político.

Em segundo lugar, a natureza unipessoal da presidência de Macron, depois da tentativa falhada de montar um partido centrista que pudesse institucionalizar o Macronismo, tornou a sua sucessão muitíssimo complexa. Quando entrou no Eliseu em 2017, a aposta de Macron — um eterno optimista — era evidente: se conseguisse reformar o país e torná-lo novamente competitivo, isso dar-lhe-ia a capacidade de montar um movimento político mais perene que pudesse sobreviver à sua inevitável retirada do Eliseu. Sejamos honestos. O contexto internacional dos últimos anos foi, talvez, o mais complexo desde 1945. O Brexit, uma pandemia, a Guerra na Ucrânia e uma crise inflacionista não são de molde a realizar reformas profundas em nenhum país, muito menos num país com a complexidade social e política como França.

Neste contexto, Macron decidiu jogar aquela que poderá ser a sua última grande cartada. Na sequência do resultado humilhante das eleições Europeias, Macron escolheu a espada ao dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas antecipadas, num gesto que deixou a Europa perplexa. Na V República Francesa só houve três eleições legislativas antecipadas e todas terminaram em períodos de coabitação. Naturalmente que, no contexto actual, se a RN ganhar as eleições, a coabitação revestir-se-á de maior complexidade na medida em que seria a primeira vez desde o fim da Guerra que a extrema-direita conseguiria ocupar o executivo. O gesto de Macron é de tal maneira inusitado que vai contra o espírito da Constituição. Na última reforma Constitucional, que diminuiu o mandato presidencial de sete para cinco anos, os legisladores Franceses aproveitaram para mudar o calendário das legislativas, marcando-as imediatamente a seguir às eleições presidenciais. O objectivo era simples: diminuir a probabilidade de coabitação, aproveitando o momentum eleitoral do presidente recém-eleito. Ao marcar eleições a meio de um ciclo presidencial, Macron aumentou em muito a probabilidade de a oposição conseguir utilizar as eleições legislativas como um voto de protesto contra a sua presidência.

Apesar de ninguém ter a certeza do que vai na cabeça de Macron para esta decisão – nos jornais internacionais diz-se que o próprio primeiro-ministro em funções não foi antecipadamente informado da decisão – há cenário que aparenta ter orientado a decisão do presidente Francês: a teoria da vacina. No sistema político Francês, enquanto Macron for presidente, os danos que o partido de Le Pen pode provocar são, apesar de tudo, relativamente restritos. Existirão dois potenciais cenários no actual contexto Francês. Em primeiro, a expectativa de Macron será que estes três anos de RN à frente do executivo mostrem, por um lado, a incapacidade do partido em governar, e, por outro lado, exponham a ausência de soluções reais para o país. No fundo, ao cooptar a RN para o centro do sistema político, Macron espera diminuir a capacidade do partido em bramir o velho adágio populista do nós contra eles. Se for bem sucedido, as hipóteses de Le Pen ganhar o Eliseu em 2027 sairão diminuídas. Em segundo lugar, estas eleições legislativas poderão servir como uma espécie de primeira volta das presidenciais. Assim, estas eleições poderão servir para fomentar alianças eleitorais à esquerda para que, em 2027, aparecerá um candidato eleitoral forte naquela área política que consiga polarizar o voto popular com Marine Le Pen.

A confirmarem-se as previsões, as eleições legislativas em França serão um momento simbolicamente muito importante para a Europa. Pela primeira vez desde a sua fundação a União Europeia terá um partido de extrema-direita no poder num dos países do eixo Franco-Alemão. Apesar da extrema-direita e da direita radical estarem já no governo em variadíssimos países, é evidentemente diferente que ocupem um cargo de tanta importância em França ou na Alemanha. No entanto, como os últimos anos provaram à saciedade, três anos é uma eternidade e muita coisa pode acontecer entretanto. Nada está escrito na pedra. Em última análise, numa democracia representativa, o povo tem a capacidade de escolher quem quer a comandar os seus destinos.

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