Ele não se candidataria. Mas candidatou-se. Ele não ganharia a primária republicana. Mas ganhou. Ele não conseguiria vencer a maravilhosa Hillary. Mas venceu. Quando 2016 presenciou a vitória de Donald J. Trump não podia acreditar naquilo que estava perante os seus olhos. Depois da vitória do Brexit, assistíamos agora à vitória dum outsider no país mais influente do mundo. A eleição presidencial americana de 3 de Novembro será um evento seguido por todo o globo – o que se passa nos Estados Unidos costuma vir a influenciar decisivamente os destinos do planeta.
Veremos nós a reeleição de Trump ou a eleição de Biden? Se acreditarmos naquilo que a mídia, principalmente a mainstream e europeia, nos transmite uma coisa é certa – a vitória de Trump parece impossível. Só que como diz o adágio anglófono fool me once, shame on you, fool me twice, shame on me. Tradução livre: à segunda só cai quem quer.
Será Joe Biden um candidato melhor do que Hillary Clinton? Tenho as minhas dúvidas. Não é segredo para ninguém que em 2016 o DNC (Democratic National Committee) fez a vida a negra – perdoem-me a expressão – a Sanders e deu um empurrãozinho à Hillary. Só o futuro dirá se a mesma coisa não ocorreu contra o senador do Vermont nesta primária. O partido democrata encontra-se mergulhado num dilema insolúvel, o fosso entre a estrutura partidária, essencialmente centrista e moderada, e a base, cada vez mais reivindicativa e radical, amplia-se ano após ano. Recordemo-nos que em 2016 Bernie Sanders ganhou na primária dois estados importantes que os democratas perderiam para Trump, dois estados do Rust Belt, Michigan e Wisconsin. O discurso proteccionista de Donald Trump foi chave para conquistar esses dois estados.
Nos Estados Unidos da América vigora um sistema de colégio eleitoral (Electoral College) que tem como número mágico o 270, ou seja, o candidato vencedor tem que chegar a esse número ou ultrapassá-lo. Os candidatos focam-se em vencer os estados individualmente, quem vence um estado recebe todos os eleitores desse estado (tirando algumas excepções pouco relevantes). E a importância dos estados varia, dois exemplos: a Flórida vale 29, enquanto o Minnesota vale 10.
Joe Biden sofre da descredibilização da classe política, tal como Hillary Clinton. Trump diz em bastantes dos seus comícios que não é um político e isso, por mais estranho que possa parecer a um europeu, é extremamente sedutor para um votante norte-americano, independentemente das suas preferências políticas. Na Europa – principalmente na continental – existe uma glorificação dos políticos que os americanos não compreendem, para eles os homens podem actuar para o bem da comunidade através da sua cidadania, não precisam de ser eleitos. Trump também se gaba frequentemente de que não precisa da política para nada, de que tinha uma boa vida antes de se lançar na política. Alguém pode negar isto? Dificilmente. É complicado ver uma vantagem de Biden face a Trump neste ponto. Alguns dirão que isto é superficial já que Trump faz parte da elite norte-americana, porém há uma diferença crucial entre fazer parte da elite norte-americana e fazer parte da elite política norte-americana.
A desordem e os estragos provocados pelos manifestantes depois da morte de George Floyd terão consequências negativas para o partido democrata. A complacência do mesmo com as milícias trotskistas e spartakistas (conhecidas como ANTIFA) convenceu bastantes moderados que não gostam de Trump a votar nele. Dados recentes dizem que Trump tem índices de aprovação com os Afro-americanos impensáveis para um republicano (veja-se a Rasmussen Reports por exemplo). É altamente plausível que Trump seja o republicano com os maiores índices de aprovação das últimas quatro décadas nessa comunidade. Cidadãos afro-americanos viram alguns dos seus negócios serem destruídos durante as manifestações, a reprovação face a esses actos por parte do partido democrata foi para eles demasiado tardia e pouco convincente.
Há quem pense que a gestão da pandemia de Donald Trump custar-lhe-á a eleição. Desenganem-se, esse pensamento simplista só é esmagadoramente maioritário entre os nova-iorquinos e os californianos. Os americanos, povo economicista de matriz calvinista, realizam-se através do trabalho. A destruição da economia para estancar a pandemia é um preço que muitos não querem pagar. Enquanto o católico vive para o prazer, o calvinista vive para trabalhar. Basta comparar Rodrigo Borgia com João Calvino. Dir-me-ão que estas identidades estão ultrapassadas, e que a secularização das nossas sociedades arrumou com esta questão. Erro crasso. Esta fetichização do trabalho persiste dentro do espírito norte-americano, mesmo que diluída ou subterrânea. Para um calvinista é no trabalho que Deus nos abre a porta à salvação e que um homem se dignifica. Acreditem que muitos americanos terão isso em mente na hora de votar, e aqueles que querem bloquear o trabalho para preservar a saúde serão punidos.
Contrariamente ao que se diz, Trump é menos belicista do que Biden, como já tinha sido menos belicista do que a esposa de Bill Clinton. O candidato republicano usa o argumento de trazer tropas americanas para casa antes do Natal, deixando críticas severas à indústria do armamento e a alguns generais que defendem as guerras a todo o custo. Seguidamente a isto diz à sua plateia que a América anda a construir países estrangeiros em vez de reconstruir as estruturas decrépitas no seu próprio território. Juntemos a isto a questão da transição energética, na qual Biden tem uma posição versátil. É fantástico salvar o planeta mas quando isso é sinónimo de perder o nosso emprego a coisa complica-se. O candidato democrata tenta atingir um justo meio aristotélico, dizendo que é preciso começar a transição sem descurar o emprego. Trump tem uma posição diferente, o desemprego deve ser evitado, a transição energética não é uma das suas prioridades.
A política – ou se preferirem o político – é conflitual por essência, Carl Schmitt sabia-o e Chantal Mouffe tem feito bastante para relembrar-nos desse facto desconfortável. Quando Biden se coloca numa posição conciliadora ele está a amputar as suas chances de sucesso. Trump, animal político, sabe que é lançando achas para a fogueira e exacerbando as divisões que se ganha. Fê-lo em 2016 e está a fazê-lo em 2020.
Se adicionarmos à corrida a entrada de Amy Coney Barrett no tribunal mais importante da América (Supreme Court) e o portátil do inferno (laptop from hell) – que contém informações comprometedoras sobre Joe Biden e o seu filho Hunter – a Casa Branca parece afastar-se cada vez mais do partido democrata.
Dias antes do derradeiro dia ainda está tudo em aberto. Biden pode ganhar, Trump pode ganhar, o resultado pode não ser sabido. É possível que o vencedor não seja declarado imediatamente e a tensão alastrar-se-á; alguns dizem mesmo que poderá não se saber o vencedor no início de 2021. A eleição pode ser decidida pelo tal tribunal, o Supreme Court, como em 2000 quando Bush ganhou a Gore.
Todavia seria incorrecto não dar ao leitor a nossa previsão, sabendo que esta é falível. Não só pensamos que Trump ganhará, como cremos que poderá mesmo aumentar a sua vantagem, transformando estados democratas em 2016 em estados republicanos; por exemplo o Nevada, o Minnesota e New Hampshire. Resta-nos desejar uma boa madrugada aos que seguirão a contenda e aconselhamo-los a fazerem pipocas, esta eleição será tão apaixonante como os melhores clássicos de Hollywood.