Muita gente, talvez a maioria de nós, acredita que a base do conhecimento é a experiência e que todo o método científico se baseia em recolher dados e interpretá-los. Permitam-me que nos próximos parágrafos vos possa convencer do contrário. Que ciência não tem nada a ver com recolher dados para tirar conhecimento e todas as áreas de conhecimento que nele se baseiem podem ser tudo, mas ciência não são de certeza. Existem, aliás, muito poucos casos em que tal é possível.
O caso que repito dezenas de vezes é a experiência da moeda ao ar, a primeira com que contactam todos os que lidam com dados. Quando questiono que dados a experiência produz, os meus alunos respondem quase de imediato “cara ou coroa”. No entanto, tal está muito longe da verdade. A experiência produz radiação refletida na moeda, som produzido pela queda, rotações, deslocação de ar, vibração sobre a superfície onde cai e, com elevado grau de certeza, vai acabar por se imobilizar com uma das faces voltada para cima. Isto para dizer que de todos os dados produzidos pela experiência, nós selecionámos apenas uma fração muito pequena. De toda a “física” que se passou à nossa frente, construímos mentalmente uma experiência que só necessita do resultado final. Ou seja, aquilo que os meus alunos responderam como “experiência” é uma mera construção mental que só numa pequena parte se relaciona com o que aconteceu na natureza.
Mas a nossa construção mental significa alguma coisa em termos físicos? No caso da moeda, claro que sim. Era um bocado estúpido que passássemos séculos a falar desta experiência se não fizesse sentido, mas a razão pela qual se pode atribuir um significado físico à experiência está longe de ser trivial. Tão longe que há quem só trabalhe nisso. Mas só para que não fique no ar, digamos que precisamos que o sistema físico cumpra com determinados critérios (por que é que fazemos experiências a controlar a temperatura, a pressão, em câmaras fechadas, etc…?) para que os dados que recolhemos tenham um significado físico relativamente à experiência feita. Ou para que, em termos comuns, tenha um significado científico. Tudo o resto não é ciência, embora qualquer mamífero possa criar outra construção mental e enfiar dados nela. Tal estará no domínio do livre-arbítrio, mas não no do conhecimento.
O caso que agora veio a público tem a ver com algo a que se convencionou chamar de “racismo médico”, uma ideia retirada dos pseudocientistas americanos, a maior parte sociólogos, que reclamam a existência de um tratamento médico diferente conforme a origem racial do doente. Foram recolher, para o efeito, dados que corroborassem tal hipótese. Ora, qualquer pessoa sã recusaria tal ideia, pelo menos como algo generalizado. A simples ideia de que, como regra geral, um negro seria tratado de forma diferente de uma pessoa de outra raça nos cuidados médicos é tão repugnante do ponto de vista médico que a primeira reação seria de descrença. No entanto, nada impede que se construa mentalmente a hipótese, como no caso da moeda, e se enfiem para lá dados.
Os “cientistas sociais” do outro lado do Atlântico conseguem acreditar em coisas piores, e com dados de origem certificada e comprovada, chegaram à conclusão de que era muito mais provável uma criança negra morrer nas mãos de um médico branco do que nas de um médico negro (o curioso destes estudos é que só existe uma raça discriminada, todas as outras são beneficiadas). Ou seja, para estes sociólogos, a ideia de chamar aos médicos pediatras americanos de racistas assassinos é coisa perfeitamente plausível e ninguém foi capaz de perceber que a construção mental feita era essa: os médicos brancos são uns assassinos negligentes racistas.
Esta conclusão foi tirada de um estudo que já tem alguns anos e o The Economist descobriu agora que outra equipa foi pegar nos mesmíssimos dados e foi tentar replicar a conclusão. De tão absurda que era, tentaram perceber que dados não tinham sido usados. E descobriram que foi sonegada a informação – talvez não propositadamente -, de que a maioria das mortes ocorre em urgências neonatais, com crianças prematuras, e a esmagadora maioria dos médicos das urgências neonatais eram brancos. Consequentemente, a maioria das crianças morria nas mãos de médicos brancos.
Este chocante exemplo em que alguém imagina que um médico negligencie um bebé apenas porque é negro, ou ainda pior, que toda uma classe profissional de uma etnia negligencia bebés de outra etnia, é apenas um exemplo de como disciplinas pouco sérias atingem estatuto de conhecimento superior. O caso em apreço tem ainda a caraterística adicional de se reclamar ser um fenómeno emergente, ou seja, algo que ninguém poderia apontar individualmente, mas que o conjunto dos médicos brancos se tornava, no coletivo, como uma associação de racistas assassinos negligentes de bebés.
A ciência séria tem sempre um fundamento teórico à cabeça, ela deriva da lógica, que é outra forma de dizer “alguém deduziu ali umas fórmulas que explicam os resultados”. Bastava uma pessoa não ser doente para que a hipótese assassina de bebés nem sequer se colocasse. Aliás, tivesse eu começado este texto com a conclusão, sem mais explicações, e certamente me teriam chamado todos os nomes possíveis. No entanto, atribuindo um carácter académico a este tipo de pseudociência, os “estudos” ganham uma credibilidade que não tinham à partida.
Como tudo na vida, a ideia de ciências sociais não é uma má ideia. Ninguém pode ser contra o facto de se fazer ciência sobre a sociedade. Eu próprio, na minha ignorância, faço vida disso. Mas a ideia de uma “ciência” que cumpre os seus próprios métodos, sem respeito por 2500 anos de matemática, é algo suficiente para se negar o estatuto de académico, pela mesma razão que se impede outros tipos de trambiqueiro de enganar pessoas: o consumidor não tem informação suficiente para saber se o estudo é sério ou não. Se não deixamos vender tinta preta como café, não devíamos deixar passar “ciências sociais” com o estatuto de ciência.
O facto é que a coisa já atingiu níveis tão inaceitáveis que se pensa que a vitória das eleições americanas tem embutida um grito de revolta contra a aceitação deste tipo de “academismo” na academia e contra um claro condicionamento da opinião provocado pelo estatuto de ciência que estes “estudos sociais” carregam. No mínimo, não passam de mera ignorância sobre o que constitui ciência e, no máximo, de pura vigarice.
Não é preciso fazer um continente inteiro grande outra vez. Basta varrer das universidades aquilo que não é, nunca foi, nem nunca será conhecimento. Façam das universidades grandes outra vez ou então vão chamar ao vosso médico assassino de bebés que é coisa que ele deve gostar.