Há alguns meses lia-se nas manchetes: o bastonário da Ordem dos Médicos afirmou que a possibilidade de haver situações de má gestão no Serviço Nacional de Saúde (SNS) “é um motivo de preocupação” e “mais um grande motivo de reflexão” para o Ministro da Saúde.
As declarações foram feitas na iminência do anúncio de uma resolução do Conselho de Ministros neste âmbito. O Governo criava assim, “na dependência dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde, uma Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde, tendo como missão o acompanhamento do desempenho financeiro global das entidades do SNS e do Ministério da Saúde e a proposição de medidas que contribuam para a sustentabilidade do SNS.” Se, por um lado, a transparência é essencial à boa gestão, por outro, a verdade é que, por si só, o reforço da supervisão da performance financeira das lideranças do SNS não transforma, por si só, a cultura das organizações.
John Kotter, um dos maiores estudiosos na área da gestão da mudança, define que a capacitação de equipas fortes no terreno, capazes de formar um ciclo ação-feedback, é um dos passos essenciais para o sucesso de qualquer transformação organizacional. E quem melhor para esta transformação que os profissionais que estão na linha da frente das instituições prestadoras de cuidados de saúde?
Ao longo da sua prática profissional, os médicos deparam-se com situações e cenários dos mais variados que possamos imaginar, que extravasam a competência técnico-científica para a qual, em termos de educação formal, são treinados nas universidades. São necessárias competências de gestão e liderança para as quais, muitas vezes, estes profissionais de saúde não estão treinados.
É inegável a evolução a que vamos assistindo no campo da medicina e da prestação de cuidados de saúde. Com uma população cada vez mais envelhecida e a precisar de volumes crescentes de cuidados de saúde, o SNS vê a sua sustentabilidade futura colocada em risco. No entanto, Portugal não é caso único. De tal forma que já existem inúmeros estudos que apontam possíveis soluções para estes problemas habitualmente descritos como incontornáveis.
A Universidade de Harvard refere que as inovações disruptivas serão a solução para a sustentabilidade dos sistemas de saúde. Sugere-se que acontecerá um fenómeno inevitável a que os especialistas chamam de “Task Shifting”, em que teremos outros grupos de profissionais de saúde a assumirem cada vez mais responsabilidades e competências clínicas.
Para liderarem esta mudança, os médicos deverão ter a capacidade de conciliar as suas competências técnicas com o domínio das competências do futuro. De acordo com o relatório “The Future of Jobs” produzido pelo Fórum Económico Mundial, essas competências são:
- Resolução de problemas Complexos
- Pensamento Crítico
- Criatividade
- Gestão de Pessoas
- Trabalho de Equipa
- Inteligência emocional
- Julgamentos e tomada de decisão
- Orientação de Cuidados
- Negociação
- Flexibilidade Cognitiva
Também o relatório Francis, de 2013, encomendado pelo governo britânico, enfatizou a necessidade de desenvolvimento de competências de gestão e liderança na classe médica. Quando devidamente capacitados para a gestão da mudança, os médicos foram considerados agentes de mudança com grande potencial. Esta perspetiva foi apoiada por profissionais seniores que destacam que, ao incorporar áreas curriculares de gestão e liderança nos currículos médicos pré-graduados, estes profissionais de saúde serão equipados com competências que os tornarão mais competitivos a médio e longo prazo. Este ensino deve combinar abordagens teóricas com aplicações práticas.
Por outro lado, um estudo de larga escala levado a cabo pela McKinsey e a London School of Economics, e que abrangeu 1.300 hospitais, demonstrou claramente que ter nos seus quadros médicos profissionais com competências em gestão impacta positivamente na performance económica dessas instituições, assim como na qualidade dos cuidados prestados aos utentes.
Infelizmente, ao analisar a realidade nacional, o panorama não é animador. Analisados os currículos das oito escolas médicas do país, praticamente nenhuma acompanha esta tendência. Ou seja, pelo menos nesta área, o ensino médico em Portugal não está a antecipar as tendências do futuro. Nos corpos docentes das faculdades mais antigas não são raros os defensores da ideia de que a capacidade de liderança está mais associada à experiência do que à educação. Não só estão enganados, como a evidência científica os contradiz tacitamente.
A educação médica portuguesa não tem evoluído tanto quanto deveria nas últimas décadas. O curso de Medicina continua a ser dos mais longos do ensino superior. Faz-se maioritariamente de cadeiras longuíssimas, lecionadas por professores antigos. Tomemos o exemplo do ensino da anatomia médica, em que os estudantes são obrigados a memorizar centenas e centenas de nomes de sulcos e espinhas do corpo humano. Esse exercício pode ter muito de poético ou mesmo de romântico. Inspirou, inclusive, uma das mais famosas cenas do “Pátio das Cantigas”. No entanto, não nos podemos esquecer que vivemos numa nova era. Na era digital, em que toda essa informação está à distância de três cliques no telemóvel, não deveriam as escolas médicas estar a investir mais tempo da formação em questões às quais os computadores não conseguem responder? Em áreas mais operacionais e práticas como a Liderança, Gestão ou até mesmo de comunicação clínica.
Verdade seja dita. Visitando os sites das oito faculdades de medicina do país, existe uma única excepção a nível nacional. E por mais irónico que isso possa parecer, essa excepção apenas foi possível numa das mais jovens faculdades de medicina do país. A Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior é, atualmente, a única escola médica do país que apresenta no seu currículo um módulo obrigatório de Liderança e Gestão de Saúde. Criado há 13 anos por Henrique Martins, médico, à altura recém-doutorado pela Universidade de Cambridge, trouxe para terras lusas aquilo que de melhor se fazia fora. É apontada como uma área de formação marcante por todos os alunos que por lá passam. Através de um programa formativo diversificado que inclui desde a análise de casos de instituições reais até ao uso de simulação biomédica para desenvolvimento de aprendizagens de gestão de equipas em situações de alta pressão, as competências do futuro são desenvolvidas através de dois grandes eixos: gestão e liderança.
Nelson Mandela dizia que a educação é a arma mais poderosa a usar para a mudança da cultura e do mundo.
Partindo do pressuposto que uma parte importante dos problemas de gestão do Serviço Nacional de Saúde são culturais, porque não, além de mais grupos de trabalho e unidades de missão, investir na formação dos médicos para que se tornem líderes e gestores mais capazes no médio e longo prazo? Capacitar os alunos de hoje para as competências do futuro permitirá que as equipas que liderarem amanhã, lidem com os desafios da medicina e da sociedade moderna de forma mais capaz. Porque, no final das contas, medicina será cada vez mais uma forma de gqestão.
Francisco Goiana da Silva tem 28 anos. É médico, docente na área de Liderança e Gestão de Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior. Formado na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, tem um mestrado em International Health Management pelo Imperial College de Londres e é pós-graduado pela Harvard School of Public Health. Foi o primeiro Global Shaper português a participar nas reuniões do encontro anual do Fórum Económico Mundial em Davos (2014)
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor e não vincula o Global Shapers Lisbon Hub.