Em 1893, Edvard Munch, na generosidade que marcou a sua vida, ofereceu-nos a obra, “O Grito”. O quadro atrai na sua força quem o vê, pela ligação que cria com o espetador. Todos nós ao longo da vida fomos já visitados por sentimentos de alienação, alheamento, ou necessidade de expulsar o sofrimento que nos causa o medo. Ou no confronto com a realidade sentimos um impulso irreprimível para protestar. “O Grito” de Munch ficou até hoje perpetuado como o símbolo maior da representação do medo, da solidão, da ansiedade e da raiva. Ficou também associado à tristeza, a qual, respeitando o próprio sentimento do autor, terá sido a sua influência maior (segundo o próprio, a obra terá sido inspirada numa “rajada de melancolia”).

Lembrei-me de Munch enquanto, durante o fim-de-semana, visitava a primeira exposição retrospetiva da obra do alemão Georg Baselitz organizada pelo Museu Pompidou. Seria difícil encontrar um momento mais oportuno para organizar as obras-primas deste artista plástico do que a ressaca de uma pandemia como a que vivemos nos dois últimos anos.

A obra de Baselitz é complexa e não falta quem lhe procure encontrar significados. Ao longo de uma vida artística extensa, que já dura há seis décadas, Baselitz tem ensaiado diversas correntes visuais e experimentado desconstruir ou reinventar vários estilos. Em toda a sua obra há, porém, uma tentativa de superação das referências que o próprio procura negar, como o realismo socialista, ou estilizar com uma marca pessoal, como é o caso do maneirismo, de uma forma provocatória, mas aberta. No meu caso pessoal, há muito que me interesso pela obra de Baselitz pela fusão que faz da sua arte ao estilo e mensagem das esculturas africanas (em especial das máscaras) e das técnicas da anamorfose como formas de expressão e exorcização dos espíritos e fantasmas que encarceramos no nosso corpo (e que marcam a nossa existência desenhada num tempo muito anterior ao dia do nosso nascimento). À semelhança do povo Chokwe que criou a sua arte num contexto de permanente conflito, opressão e guerra, numa procura de equilíbrio com a continuidade da vida, da tradição, em harmonia com uma natureza que não é apenas animal ou humana, Baselitz teve uma infância marcada pela violência radical da segunda guerra mundial, e uma adolescência fechada no pós-guerra e no totalitarismo da Alemanha de Leste. É a partir dos traumas da infância e adolescência (algo que o aproxima de Munch) que Baselitz constrói a sua arte, num estilo irreverente e desafiador: “Eu nasci numa ordem destruída, com paisagens destruídas, no seio de povo destruído, de uma sociedade destruída. Não aspiro a restabelecer uma ordem: já vi o suficiente … numa coisa chamada Ordem”, afirmou a dada fase. Por isso preferiu desenvolver estilos próprios, impactantes no plano visual, que chamam a atenção do espectador para as suas obras, convidando-os na provocação estética (que inclui imagens pós-apocalípticas, de grito, de alienação, vários quadros virados de cabeça para baixo, e referências de dor, sofrimento, e apelo à sensação de morte), a pensar, sem com isso projetar uma ideia fechada ou um contexto político marcado.

Foi na observação do legado de Baselitz, numa viagem sinuosa que começa com imagens fortes, de atração pelo abismo ou repulsa estética, que nos convoca a dada fase a ver o mundo invertido e do avesso, e que termina num mergulho de reminiscências abstratas e suaves, com cheiro de libertação e morte, que me deixei visitar por pensamentos soltos, os quais, hoje, decidi organizar e partilhar nesta crónica.

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Vivemos tempos difíceis e duros, muito distintos, em qualquer caso, dos que marcaram as infâncias, adolescências e juventudes de artistas como Baselitz, ou de filósofos do seu mesmo contexto, como Heidegger ou Arendt. Sentimos no ar, porém, o mesmo cheiro que levou Arendt a recuperar o “mal radical” e a sua banalização, que simbolizam o enraizamento de um ódio e desejo de dominação que nunca deixaram de estar latentes na génese das ideias que aspiram à Ordem e a uma mansa normalidade. Os inimigos da liberdade nunca abandonaram as suas aspirações totalitárias, ainda que travestidas nos ideais democráticos de supostas direitas ou esquerdas, criando ilusões de participação de todos na Grande Decisão.

Adormecidos nas ânsias mundanas de vidas sem sentido, alienados nas suas corridas rumo a lado nenhum para cumprir com agendas recheadas de pequenas distrações com que preenchem o tempo que não usam, cidadãos angustiados e paralisados pelo medo preparam-se mais uma vez para entregar aos políticos de turno os seus próprios rumos e as decisões sobre o que marca a sua (in)existência. Em vez de lutarem por resgatar o seu futuro, fingem acreditar nas personagens desqualificadas e sem preparação que nas suas fracas encenações televisivas ou em mensagens empacotadas em meia dúzia de carateres, se agarram a ideias caducas e perigosas para venderem utopias, sonhos, e a segurança face à incerteza. Os agentes políticos, por seu lado, numa completa banalização do mal, utilizam farrapos de narrativas falidas nas quais não acreditam, ou que nem sequer compreendem, porque tal lhes permite ganhar as asas necessárias para realizarem as suas tristes vidas e aspirações. O “medo de ficar sem chão”, o desejo de transferir a responsabilidade para outrem que os desonere de decidir o rumo de um futuro que não querem ter de trilhar – porque é mais fácil exigir – tem como consequência a permanente escravização humana.

A ilusão de relevância e sentido que a participação política cria nos cidadãos, em regimes onde não funciona a separação de poderes, em que a lei há muito vive fragilizada, e em que o contrato social é meramente aparente, onde já não sabemos bem o que significa “liberdade”, “responsabilidade” ou “justiça”, só é possível porque impera o medo, a angústia, uma profunda confusão sobre o sentido da realização e da felicidade, onde a sensação de perda associada à mudança pesa mais do que a vontade de romper. Como dizia Heiddeger, na nossa fragilidade preferimos viver com “sentidos emprestados”, do que ter de trilhar o nosso próprio sentido. Não sei se são cegueiras voluntárias, ou simplesmente cortinas de fumo que o nosso ego constrói para esconder uma verdade nua e crua: o nosso sistema político é hoje uma expressão da banalização do mal, e está construído em cima da farsa e da venda de ilusão. Nos pequenos confortos de uma sociedade capitalista que a inveja humana politicamente distorce e desvirtua, os sistemas políticos continuam a tudo fazer para escravizar a natureza humana, tornando as existências amorais. Perdidos que estamos na discussão de pequenos sofismos que afirmam a política na anulação do outro e cuja extensão intelectual fica limitada aos 280 carateres permitidos pelas novas teocracias dos Vales do Silício, vivemos de alienações, de falsas sensações de liberdade e participação, com vidas emprestadas e ambições ordenadas por personagens que nos lembram Snowball, Napoleão e Squealer, herdeiros do Velho Major.

Muitos dir-me-ão que não nos faltam, hoje, liberdades. Algumas não faltarão, mas boa parte delas estão invertidas, confundindo-se com meros triunfos da vontade: a qual, ainda assim, não nos pertence, é-nos conferida, para ser vivida na mais espúria amoralidade. Vontades limitadas, acomodadas, conformadas, vividas sem a responsabilidade da decisão e o ónus das consequências. Talvez o mundo tenha sido sempre assim, e a vida mais não seja que uma enorme representação, onde uns, protagonistas, definem a narrativa da existência, enquanto outros, os que pagam o bilhete, vivem a ilusão de pertença, assistindo ao Teatro.

Dia 30, irei votar, na consciência plena que participo, eu próprio, numa Grande Encenação