1Há dias deixei aqui um escrito onde sublinhava a diferença de tratamento pela media entre o mundo das direitas e das esquerdas e o modo quase unânime como traduzia depois – com raras excepções – esse olhar. Um desnível maiúsculo inscrito num singular universo mental (e moral). Quase como se o regime, a vida política, as instituições, o espaço público, os outros poderes, estivessem já suficientemente bem ocupados e representados pelo PS e pelos seus ex e futuros parceiros. Dispensando o resto como um estorvo ou um despropositado intervalo na democracia “deles” E coitados dos portugueses liderados por governantes ou Presidentes fora do circuito socialista: Portugal logo “regride” .

Sucede que desta vez uma dessas “redações”, no caso em voz alta e sobre as maiorias de Cavaco Silva – ocorreu exactamente ao mesmo tempo que uma secretaria do Estado tutelada pelo então Ministro das Finanças do PS, João Leão, tratava da ( bem almofadada) transição do mesmo João Leão, do Terreiro do Paço para a vice-reitoria de uma universidade “deles”. Não é o ISCTE um poderosíssimo “braço armado” estatal do PS e não é o Estado pertença dos socialistas? Tudo em família.

Não sei que espanta mais: se o facto de tais coisas poderem suceder ,se a espantosa impunidade com que sucedem. Se é assim mal começou a nova era socialista, imagine-se daqui em diante.

Pouca sorte estarmos assim “entregues”.

2 E no entanto… Se o PS, sempre com amparo mediático, rescreve como lhe convém a história dos bons momentos do PSD, este por seu lado esconde-os quanto pode. O que se formos a ver é tanto mais grave – e pouco sério – quanto o PS mentir sobre o passado social democrata ou a media apoucá-lo. Não se sabe assim o que pensar de uma agremiação partidária que voluntariamente substitui o orgulho sobre o seu legado por um fastio enjoado face ao que líderes anteriores fizeram pelo país. Privar gerações de militantes, simpatizantes e votantes, da lembrança dos (bons) sucessos assinados pelo próprio PSD? Como se aquilo que o então Primeiro Ministro Cavaco Silva foi capaz de fazer pelo desenvolvimento do país – crescimento económico, privatizações, novas infraestruturas, os templos culturais do Serralves e do CCB,e por aí fora – nunca tivesse acontecido. Mas aconteceu, eis a questão, quer as direções do PSD tenham essa noção ou não (ou se fiquem pelo fastio). Está já inscrito no país. Espanta porém tão inexplicável omissão: de onde virá? Não sei. Mas remeto para a notável capacidade da natureza humana em descodificar sentimentos e comportamentos: ela que se encarregue disso. Por mim assinalo o que me compete que é o ver um grande partido político abdicar intencionalmente do melhor do seu passado recente e começar uma história a partir do (seu) presente. Delapidando gratuitamente as heranças e confundindo os herdeiros. Um grande erro.

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3 Com Pedro Passos Coelho o figurino não mudou: para o actual PSD Passos não existiu no PSD.

Que me lembre não ouvi no parlamento – ou fora dele, em intervenções, ou discursos – louvores ou sequer alusão digna de nota ao que o PSD (com o CDS) fez naqueles anos de tormenta e sacrifício. Ou sequer lembrar que tais tormentas não foram negociadas com a troika pelos sociais democratas mas pelo PS, após o quase estado de banca rota em que o governo socialista manietara o país. Acompanhei profissionalmente e de muito de perto esse largo período, escrevi frequentemente sobre ele, entrevistei muita gente, tomei muitas notas. Mas do mesmo modo que testemunhei a dureza por vezes implacável desses dias, também me apercebia que daquele chão madrasto iam saindo algumas sementes de luz: o início do crescimento económico, o não ter havido segundo resgate, a dispensa da ultima tranche do empréstimo, as exportações a acordarem. (E o país com elas). É aliás essa espécie de “legitimidade” que me advém do que vi e escrevi que me impede de valsar na narrativa socialista ou de cantar em coros desafinados. Poderia porem ser de outro modo no PS? Como explicar ao “povo” que o comandante político desses anos de chumbo tenha ganho de novo as eleições em 2015? Nunca o PS que aí está – já houve outro – concordaria que o crescimento económico começou de facto com a coligação PSD/CDS e não com o par Costa/Centeno. Nem – vexame! – que as desigualdades sociais em Portugal aumentaram com a austeridade Sócrates/Teixeira dos Santos e diminuíram com Passos Coelho/ Gaspar. (O que aliás não sucedeu em mais nenhum programa de ajustamento na “Europa”.)

Não se pode ficcionar os números como se tenta fazer com a realidade, eles não gostam: são implacáveis na sua frieza.

Mas que o PS – este – não possa senão refazer a história é lá com ele: tinha de o fazer para se conferir uma segurança governativa alicerçada numa aliança de má memória que foi estreia política e parlamentar. Tal aliança reverteu e desfez. Não se sabe bem para quê : o pais esta mais rico? Menos envelhecido? O Estado menos pesado e a administração publica mais operacional? A justiça funciona melhor ou sequer funciona? O médico de família está generalizado no país? O ensino liceal recomenda-se e aplaude-se o nível de conhecimento dos nossos alunos quando chegam á Universidade? Ah e que reformas houve (reformas maiúsculas) que projectassem Portugal para um futuro menos baço?

Houve grande diminuição do défice? Houve, é verdade. Mas quanto custou em cativações que lesaram milhões de portugueses e quase deixaram cair de podre escolas, estradas, vias férreas? Para não falar na deterioração aguda do Serviço Nacional de Saúde ocorrida nesses anos de glória de Mário Centeno.

4 Se ao PS porém o que é do PS, com o PSD tudo fia mais fino: não há partidos sem passado, nem política sem história. E vitória alguma sem o que um partido foi e fez no passado. O que quero enfim dizer é que se o PS ainda teme Passos Coelho (ainda, ainda) ou denigra um político como Cavaco, isso faz naturalmente parte integrante do menu socialista. Mas que o PSD não valorize o seu passado (não omitindo evidentemente os erros cometidos) pode ser outra forma de nos sinalizar que o seu futuro está em alto risco. Não só – obviamente – por causa disto mas “isto” explica alguma coisas na eloquente derrapagem – até onde? – de um partido que tanto contou no país. Voltará a contar? Faço parte do diminuto grupo que acha que sim. Mas quantos intuitivos não são apanhados na armadilha da sua própria intuição?

PS: Passei a minha adolescência e a minha juventude maravilhada pelo modo como Eunice Munoz me ensinava a ver teatro. Era uma espécie de farol que iluminava o palco diante do qual se sentava uma jovem no auge do deslumbramento pela arte cénica que amava desce criança. A curiosidade foi-se aprimorando, o interesse agigantando, as idas ao teatro eram uma devoção, a visita aos actores nos bastidores uma obrigação. Pela vida fora continuei com Eunice como farol e como a admirei, me comovi, me maravilhei, santo Deus. São tantas lembranças quanto as pequenas-grandes histórias que vivi com ela. Continuará a ser assim, há pessoas que não partem, mesmo quando se despedem. As eternas. Como ela, minha querida Eunice.