“Se há alguma regularidade no clima mediterrâneo é a sua irregularidade”, uma frase muitas vezes dita sobre o clima mediterrânico.

Mas é necessário, antes de mais, começar para além do mar mediterrâneo, pelas montanhas que o rodeiam, pelo deserto do Sara e até pelo próprio oceano Atlântico. São estas as grandes forças que o definem. A paisagem resultante criou com mais detalhe uma geografia e uma morfologia e esta geomorfologia desenvolveu, em última instância, a natureza que depois deu origem à nossa cultura, quem somos e o que fazemos.

No verão o calor é de facto abrasador, talvez por causa do Sara que empurra o seu ar quente e seco para norte, trazendo com ele os períodos longos de seca a que nos habituámos. O atlântico por seu lado é que nos traz a esperada chuva, muitas vezes em momentos que acabam por ser nocivos, já fora dos tempos oportunos ou do crescimento das espécies que cultivamos. Esta chuva, como diz Braudel, ao impossibilitar algum trabalho de campo, deixa-nos perante uma realidade em que o melhor é colocar mais um madeiro de azinho na lareira e saborear um copo de vinho tinto, pão de trigo com paio, queijo de ovelha e umas azeitonas temperadas. Mas nem tudo é mau, o sol brilha nos dias frios do inverno, sabe bem quando nos aquece a pele que, com ele escurece. Este sol de inverno, entra pelos quintais, varandas e janelas adentro tornando os dias de inverno mais belos, mais suaves e cheios de luz. Isto, ao contrário do norte da Europa onde o inverno é bem mais longo e cinzento ou mesmo escuro. Os animais também agradecem estes dias solarengos, dormem as suas sestas debaixo do sol, confortados pelo seu calor. Na estação oposta, nos longos dias de verão, os gatos procuram a sombra e estendem se ao comprido. As noites, também quentes, presenteiam-nos com a beleza e o brilho das estrelas tão visíveis num céu infinito. A primavera chega, começa pouco depois da floração das amendoeiras, numa explosão de cores, mas esgota-se rapidamente. O verde do campo muda de escuro para claro e tudo termina com o amarelo tostado dos pastos secos e das searas, prontas a ceifar. O amadurecimento dos primeiros figos assinala a chegada do verão e o final de cada dia, quando o sol se esconde, é sempre diferente e sempre bonito.

Uma bonita passagem mitológica conta que Ceres, deusa da agricultura, ensinou aos homens a difícil tarefa de cultivar a terra e produzir cereais para assim poderem fazer o pão. Durante um tempo em que esteve escondida na escuridão de uma gruta, o mundo passou por uma terrível fome que só terminou quando ela de lá saiu. A ironia da agricultura mediterrânica será mesmo essa, sem a “deusa” e sem o trabalho árduo, pouco se produz. Das terras altas sobra pouco, dado serem compostas por solos duros e pobres. Nas montanhas e florestas não se devem fazer grandes alterações pois rapidamente o seu equilíbrio será posto em causa, o que hoje chamamos erosão já os nossos antepassados conheciam bem. Nas terras baixas, embora mais férteis, é necessário muito trabalho para produzirem. Têm que ser drenadas, as pedras removidas e a vegetação rasteira, pouco útil, também tem que ser arrancada juntamente com as suas raízes. Se abandonadas, estas terras depressa voltariam a ser pântanos. Sem os ensinamentos de Ceres, talvez todas estas tarefas fossem duras demais para o homem comum.

Na origem de tudo, nos tempos dos caçadores e recolectores, há mais de dois milhões de anos, o que se comia era totalmente selvagem, nenhum animal teria sido selecionado, domesticado ou alimentado pelo homem. O mesmo se passava com as plantas. Cerca de dez mil anos antes de Cristo, na zona do Mediterrâneo oriental, os primeiros animais domesticados devem ter sido cabras de montanha, provavelmente para serem sacrificadas em rituais e só depois consumidas. Delas tudo era aproveitado, incluindo a pele. A palavra sacrífico significa tornar sagrado, a morte do animal era o fim da sua vida, mas também o início da sua imortalidade enquanto ser sacrificado, a morte dava vida. Assim, a caça e o sacrifício de um animal, de certa forma foram e tiveram, para além da componente alimentação, uma outra função: serem os primeiros rituais religiosos conhecidos. Nesta linha da domesticação, depois do animal individual e do pequeno grupo de animais, provavelmente cabras, seguiram-se as ovelhas, mas já em rebanhos, embora pequenos. Posteriormente, com os rebanhos domesticados, criou-se a pastorícia, outra atividade pré-histórica. Na fase final e já em plena revolução agrícola com aldeias e com os povos sedentários, os rebanhos e a produção de cereais permitiram uma vida em sociedade e assim o início das tradições. Por fim, com a ajuda de outros animais, o cavalo e o cão, foi possível ter rebanhos ainda mais numerosos. A vedação foi mais tarde, outro elemento marcante.

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Talvez a primeira grande economia agrícola, os egípcios, entenderam bem as limitações do seu território e dos seus terrenos, cultivaram e desenvolveram as margens férteis do Nilo, aproveitando as águas da chuva e das cheias. Criaram assim um mosaico produtivo composto por quadrados e retângulos verdes onde todos trabalhavam e cultivavam os seus alimentos, base desta civilização. Não se aventuraram para além das margens do Nilo. O deserto era uma barreira e uma proteção natural, nada mais do que isso. Os egípcios, tal como nós hoje, bebiam vinho, temperavam as saladas de alface com óleo e vinagre, comiam carne de borrego e bovino e até gostavam de cerveja. Na Mesopotâmia também se desenvolveu uma agricultura rica, mas talvez tenham sido os Cartaginenses os grandes agrónomos do Mediterrâneo. Numa carta de um agrónomo cartaginês, Magon, este explica como plantar videiras para melhor resistirem à seca e como produzir vinho de qualidade. Fala também sobre amendoeiras e romãzeiras e acaba com uma nota curiosa: recomenda a quem compre terra que venda a sua casa na cidade para não lhe poder dar preferência e assim dedicar-se de corpo e alma à agricultura. No fundo pouco mudou, as preocupações de hoje são muito semelhantes a estas, descritas por Mogan.

Mais tarde, foram os Romanos que uniformizaram a agricultura, e a levaram a um extenso território que hoje conhecemos e que definiu a paisagem rural até aos dias de hoje. Nos quatro cantos do mediterrâneo, desde onde é hoje a França até ao Líbano, ou desde onde é hoje a Croácia até a Península Ibérica, esse legado é bem visível. As florestas, bem anteriores, continuam caracterizadas pelos emblemáticos e extensos montados de azinho da península Ibérica, dos majestosos cedros do Líbano, dos lindíssimos olivais antigos da Grécia e da Croácia. O pinheiro, o castanheiro e a alfarrobeira, entre outros, também merecem referência. Os olivais mais recentes e as vinhas caracterizam as paisagens intermédias, os chamados terrenos dobrados, os trigos as planícies. Os animais estão sempre presentes, em especial as ovelhas, animal dócil que divide o seu dia de forma ritmada entre estar com a cabeça virada para o solo a pastar ou de cabeça à sombra, enquanto descansa. Antigamente, o gado de trabalho como os burros, as mulas e os bois também faziam parte do campo, hoje substituídos pelos tratores.

Nesta memória do cultivo da terra, antes dos agricultores estiveram os lavradores, e antes destes, os caçadores e os recolectores, já antes mencionados. A vida humana não pode ter começado nas terras baixas e nos vales, mas sim na montanha e na floresta. Dizia-se que quando um homem da montanha descia ao vale e encontrava um homem do vale este perguntava-lhe: “homem da montanha o que vieste fazer ao vale?” e o homem da montanha respondia: “venho ver a minha montanha”.

As árvores de fruto e as eventuais enxertias começam no Egito com os figos, as tâmaras e as romãs, em jardins e no resto do Mediterrâneo, o marmeleiro, o pessegueiro, e a macieira entre outros. A uva de mesa está sempre presente em qualquer região ou civilização, claramente retratada na literatura, na pintura ou em artigos de cerâmica. A vinha, a oliveira e a amendoeira também, mas já num contexto agrícola. A oliveira, um arbusto com origem provavelmente nas montanhas a norte do Adriático, rapidamente tomou um lugar importante na cultura gastronómica. Desde então, o azeite está presente em praticamente toda as mesas do vasto território mediterrânico e não só. Até hoje, nas novas terras regadas do Alqueva, o olival encontra grande expressão.

Sempre encontrei algo especial na luz do sul da Europa e, em particular, no céu da noite alentejana. Também há algo místico nos olivais antigos, beleza nas linhas arquitetónicas dos montes e uma paz nas aldeias pintadas de branco rodeadas de campo, ou perto do mar. Nada sabe melhor do que o copo de vinho tinto com um queijo de ovelha no inverno ou uma fresca cerveja e umas amêndoas torradas no verão. Nada sabe melhor do que estar ao lume sentindo na nossa face o calor de brasas num dia frio de inverno ou a sensação de liberdade de uma noite de verão a olhar para um céu totalmente estrelado. Talvez tudo isto seja nada mais do que um conjunto de um imaginário pessoal, romântico e literário ou, mais do que isso, uma memória genética. Grande parte do que comemos, cultivamos e de que gostamos é hoje igual ao que se comia e cultivava em outros tempos, no Egito antigo, em Cartago ou Roma. Numa nota curiosa, as espécies mediterrânicas encontram-se também referenciadas em diversos episódios bíblicos importantes nomeadamente a própria captura de Jesus no Horto das Oliveiras.

Diz Braudel, que o Mediterrâneo atual é a massa residual das águas do Mar de Tétis, que quase remonta às origens do Globo. Diz por outro lado H.G. Wells que esta zona poderia ter sido uma grande bacia hidrográfica e não um mar, e que encheu com o desmoronar de um sistema montanhoso junto a Gibraltar. O espaço mediterrânico é mais do que um mar, é uma geografia que moldou culturas, muitas vezes rodeadas por dificuldades, deixando para trás um legado agrícola, alimentar e humano, património comum e único que merece preservação.