A existência de eleições livres e concorrenciais é um dos pressupostos nos quais assenta a democracia. Todos os eleitores têm o direito de exprimir igualmente a sua voz, de modo a influenciar as decisões políticas e, especialmente, a alocação de recursos. Todos? Bem, não exactamente. Na democracia americana, o Partido Republicano tem vindo, ao longo dos anos, a utilizar um conjunto de instituições – nomeadamente, o Supreme Court, o Senado e os órgãos legislativos e executivos a nível estadual – para condicionar, para utilizar um eufemismo, os custos nos quais os eleitores incorrem para exercerem o seu direito constitucional de votar. Alguns leitores poderão pensar que isto é um exagero retórico. Infelizmente, não é. Vejamos.

1 Em 2013, a maioria conservadora do Supreme Court, no caso Shelby County v. Holder, decidiu declarar inconstitucional algumas provisões do Voting Rights Act de 1965. O Voting Rights Act representa, provavelmente, o momento político mais marcante da histórica política americana do século XX. Originou legislação que não só garantia o direito universal ao voto, incluindo aos African-American, mas elencava também um conjunto de normas processuais que protegiam a votação, tornando o direito ao voto efectivo e não apenas um tigre de papel. Em 2013, os conservadores decidiram anular a provisão que obrigava os estados a comunicar previamente ao governo federal quaisquer alterações às práticas de voto. Na prática, isto dava ao governo federal capacidade de controlo sobre as práticas eleitorais em todos os estados. Segundo os juízes, porém, passados 40 anos da legislação, havia um excesso de intromissão federal numa matéria que estava, na opinião deles, resolvida e consolidada. No seu voto de dissenso, que deu origem ao hashtag Notorious RBG, que a tornaria (ainda) mais famosa, Ruth Bader Ginsburg foi cristalina ao afirmar que, “throwing out preclearance when it has worked and is continuing to work to stop discriminatory changes is like throwing away your umbrella in a rainstorm because you are not getting wet”.

2 Os resultados estão à vista. Nos últimos anos, temos assistido, especialmente nos estados do Sul, à fortíssima diminuição do número de locais de voto em bairros e áreas residenciais tipicamente african-american. A lógica é bastante simples: diminuindo o número de locais nos quais se pode exercer o direito ao voto, aumenta-se o tempo que as pessoas têm de esperar, na expectativa de dissuadir a participação eleitoral. É muito comum, hoje, que os habitantes destes bairros estejam mais de cinco ou seis horas numa fila para votar, enquanto num bairro predominantemente branco, a poucos quilómetros de distância, os eleitores não esperam mais de uns minutos para votar.

3 Ao mesmo tempo, os requisitos formais e informais para exercer o voto pelo correio têm vindo a aumentar imenso. Este ponto é especialmente importante no contexto actual, em que a pandemia cria incentivos para os eleitores votarem pelo correio para evitarem os aglomerados de gente nas mesas de voto. Num artigo recente na New Yorker, Jeff Tobbin descreveu em detalhe a verdadeira guerra que existe na contagem de votos pelo correio. A admissibilidade do voto – isto é, se o voto é contado ou declarado inválido – requer o preenchimento de um conjunto de requisitos. Apenas dois exemplos: um voto cujo envelope esteja fechado com fita cola em vez de saliva é declarado inválido. Se a assinatura no envelope onde o voto é enviado não corresponder exactamente ao registo eleitoral, os elementos dos partidos têm direito a pedir a invalidação do voto. O aumento da lista de requisitos formais para validar os votos pelo correio cria oportunidades para invalidar os votos na secretaria. Um exemplo recente das primárias do Congresso, em Nova Iorque, em Abril, já em plena pandemia, mostra que cerca de 30 por cento dos votos são invalidados, afectando desproporcionalmente os votos das minorias.

4 Na era Trump reemergiram as milícias, pois disso se trata, compostas por polícias e ex-polícias à paisana, que estão nas imediações dos locais de voto, supostamente com a intenção de garantir a probidade e lisura do processo eleitoral. Depois de terem sido proibidas no início dos anos 80, estes grupos, cujo objectivo, na prática, é intimidar eleitores durante o exercício do voto, reapareceram em força nos últimos meses, esperando-se uma forte presença dentro de duas semanas.

As consequências destas práticas para a representação são imensas. Subvertendo a prática estabelecida de “um eleitor, um voto”, existem cada vez mais custos para as minorias votarem, a começar pelo tempo que têm de passar numa fila, muitas vezes sob um frio intenso. Existem duas maneiras de ganhar eleições: tendo mais votos ou garantindo que os eleitores que tendencialmente votam num dos partidos têm maiores dificuldades em votar. O Partido Republicano da última década, contexto político-cultural onde nasceu o Trumpismo (alguém se lembra de Sarah Palin, do Tea Party, ou da rede dos irmãos Koch?), opta sempre pelo segundo, talvez sabendo que, optando pelo primeiro, estaria condenado a perder as eleições. Felizmente, a tessitura da sociedade americana é muito forte e tem um conjunto de movimentos de grassroots que a mantém à tona, apesar de quatro anos de pesadelo que, espera-se, acabarão muito em breve.

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