Há dois tipos de previsores: os que não sabem e os que não sabem que não sabem.
John Kenneth Galbraith

No passado dia 8 de dezembro, o Observador publicou um artigo (Tempestade era mesmo imprevisível? IPMA diz que sim, mas especialista fala de uma “falta de sorte” que podia ter sido prevista à tarde) cujo título despoletou a minha atenção. De facto, a predictabilidade de um evento extremo de precipitação que afetou a zona da Grande Lisboa durante a tarde e a noite do dia 7 de dezembro e foi responsável pela perda de uma vida humana e por prejuízos avultadíssimos é, sem qualquer margem para dúvidas, um assunto extremamente delicado e que importa tratar com a máxima seriedade científica, técnica e, sobretudo, deontológica.

Com efeito, de acordo com os registos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), o evento extremo de precipitação, a que o artigo do Observador se refere, teve características excecionais ao nível da intensidade da precipitação em períodos de curta duração, sendo de realçar os valores record em dez minutos (17,1 mm), durante uma hora (47,8 mm) e durante seis horas (77 mm) registados na estação da Tapada da Ajuda, e ainda o valor record (67 mm) durante nove horas registado na estação da avenida Gago Coutinho; já ao nível dos valores acumulados diários da precipitação, se bem que se tenha atingido o máximo para o mês de dezembro (83,3 mm), registado na estação do Instituto Geofísico, ficou-se bastante longe dos valores observados em 18 de fevereiro de 2008 (143,7 mm na Gago Coutinho, 122,5 mm na Tapada da Ajuda e 118,4 mm no Instituto Geofísico).

Um resultado bem conhecido e teoricamente fundamentado da dinâmica da atmosfera é o de que os fenómenos meteorológicos têm uma predictabilidade tanto mais reduzida quanto menores forem as suas escalas espaciais e temporais. Não admira, assim, que o alerta de precipitação extrema tivesse sido dado pelos técnicos do IPMA com uma antecedência relativamente curta a partir de informação “nowcasting” proveniente de imagens de radar e de satélite, uma vez que os modelos numéricos de previsão do tempo, dada a natureza caótica da circulação atmosférica, são incapazes de prever este tipo de fenómenos locais de instabilidade de curta duração com antecedências de horas ou de dias.

No entanto, o artigo do Observador refere que o “climatologista” Mário Marques considerou que “o agravamento da tempestade (…) tornou-se previsível três horas antes do pico de precipitação” e que tinha avisado, com essa antecipação de três horas, os clientes da empresa que dirige, comunicando-lhes que “a partir da hora de jantar, a situação ia agravar”. Ainda que os termos com que a “previsão” foi feita pelo “climatologista” mais se assemelhem a uma “conversa de café” do que a um alerta meteorológico, não pude deixar de ficar impressionado com a capacidade técnico-científica do “previsor”.

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Ora, a minha vida profissional, quer ao nível da docência universitária na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, quer ao nível da investigação no Instituto Dom Luiz, e, sobretudo, a minha senioridade como docente e investigador, fazem com que conheça praticamente a totalidade dos meteorologistas e climatologistas portugueses e um número razoavelmente elevado de meteorologistas e climatologistas internacionais. Por isso, estranhei que o “climatologista” Mário Marques nunca se tivesse cruzado com a minha vida profissional.

Uma breve incursão no LinkedIn fez-me saber que Mário Marques se classifica como climatologista, meteorologista, agrometeorologista, professor e horticultor. Ora, não havendo, infelizmente, nenhum organismo em Portugal que regulamente as profissões de climatologista e de meteorologista, não me restou outra alternativa que não a de olhar para as suas credenciais académicas. Fiquei a saber que Mário Marques frequentou os dois primeiros anos do Curso de Gestão Industrial do Instituto Politécnico da Guarda (1992-1994), os dois primeiros anos do Curso de Gestão Agrícola da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (1994-1996) e que tem uma Licenciatura em Geografia, Ordenamento do Território e Climatologia Aplicada da Universidade do Porto (2000-2007), uma Pós-Graduação em Gestão Integrada de Riscos Naturais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2005-2006), um Curso de Primeiros Socorros, Suporte Básico de Vida e Manuseamento de Extintores, um Curso de Árbitro de Futebol e um Curso de Estratégias de Negociação. Se Mário Marques é indubitavelmente um polímato dos tempos modernos, a verdade é que, de acordo com o que lista no LinkedIn, lhe faltam duas especialidades essenciais para quem se arroga ter conhecimentos para prever o que quer que seja em meteorologia: refiro-me a uma sólida formação matemática e física de base!

Seria, por isso, muito bom que Mário Marques comprovasse as suas competências em matéria de Meteorologia Física, Meteorologia Dinâmica, Modelação Atmosférica e Previsão do Tempo. Por exemplo, indicando um artigo científico de sua autoria que tenha sido publicado numa revista internacional de excelência da especialidade, com arbitragem por pares – estou a pensar num artigo do género de um de que sou coautor, que trata da precipitação em Portugal e que, apesar de publicado em 2000, continua a ser citado, totalizando presentemente 518 citações.

Também seria bom que Mário Marques comprovasse o que diz acerca da predictabilidade do evento extremo de precipitação em Lisboa no passado dia 7 de dezembro, apresentando o modelo em que se baseou e sobretudo os valores de precipitação e respetivas probabilidades de ocorrência que previu e lhe permitiram avisar os seus clientes de que a situação se iria agravar depois da hora do jantar. Se o conseguir fazer irá salvar a sua honra de climatologista mas não se salvará certamente de que a sua reputação moral fique para sempre manchada, uma vez que optou por nada dizer a autarcas, autoridades civis e à população em geral, preferindo restringir a informação ao seu pequeno universo de clientes que lhe pagam pelos seus serviços. Se não o conseguir fazer, e uma vez que estará certamente a salvo de qualquer crítica proveniente da nossa sociedade de brandos costumes, apenas lhe sugiro que acrescente mais uma especialidade ao seu vasto rol de competências: refiro-me à de “metedor de água”, obviamente!