Os millennials são aquela geração que começou a nascer sabe-se lá bem onde, desde que a partir dos anos 80, e termina também sabe-se lá onde, desde que não mais que a primeira década dos anos dois mil. Compreendendo, portanto, uma banda de anos que pode ir desde 1980 a 2010 (25 a 30 anos que é o que temos em mente para uma geração). Muitos dos millennials são meus alunos agora. Muitos dos millennials foram meus alunos no passado. Muitos dos millennials ainda serão, hipoteticamente, meus alunos se eu continuar por cá e se continuar a dar aulas.

As características dos millennials são muitas e muito variadas mas quaisquer que sejam essas mesmas características têm um traço transversal a todas: os millennials nasceram, grosso modo, com a revolução (paulatina ou disruptiva?) das comunicações, media e tecnologias digitais. Ou seja, todos quantos apanharam de alguma forma com este mundo novo ao colo e ao colo dele terão de desenvolver as suas vidas.

Uma das grandes questões é que nem eles, nem a geração anterior nem os que aí virão sabem onde vai isto parar em termos tecnológicos. Há uma impiedosa transformação em curso e ela é contemporânea – tendo-a acompanhado – da mudança de milénio. O que se sabe é que a mudança de paradigma na forma de pensar, de fazer e de trabalhar é imensa. Dir-se-á tão rápida como a lei de Moore: “o número de transístores dos chips sofre um aumento de 100%, pelo mesmo custo, a cada período de 18 meses”. Por palavras simples: o acesso e a utilização de tecnologia, em poucos anos, tornou-se banal a todos, quase todos. Ninguém escapa aos smartphones, para falar de hardware, às redes sociais e de trabalho, o que, em boa verdade, muda o acesso à informação, o acesso às pessoas, os relacionamentos, a natureza e forma como se trabalha. Muda tudo o que conhecíamos.

No “Future of Jobs Report” (2016) do World Economic Forum faz-se a apologia dos skills que serão necessários a esta e próximas gerações ou, pelo menos, naquilo que se considera um futuro breve. Um filme de 3 minutos que pode dizer muito ou pouco, na minha opinião dúbio e vago, explica a transformação que está em curso e foca a necessidade de desenvolver o social emotional learning (SEL). A coisa descreve-se mais ou menos através do uso de tecnologias, ou melhor, de colaboração e de tecnologias para ajudar e fomentar a colaboração. Um certo fim das competências analíticas parece ser anunciado já que as tecnologias ajudarão a fazer esse mesmo trabalho analítico. As competências emocionais e sociais ganham, assim, um ascendente cada vez maior. Mas se, e sempre, acompanhadas por tecnologia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há muito ano, decerto séculos mesmo, que não se via um downgrade tão grande relativo às competências analíticas e ao pensamento racional, leia-se igualmente cartesiano, para quase se endeusarem, e só, as competências emocionais.

Isto dito e aqui chegados é interessante comparar as competências pedidas em 2.015 (quase todas no domínio das soft skills) com as competências que se pedem para 2.020 (idem, idem). Dir-se-ia que a malta da minha geração e que não nasceu com a revolução tecnológica ao colo, que decorou a tabuada, que estudou sempre em termos de memória e racionais propõe agora um novo conjunto de skills para os millennials.

Assim, em 2015 o ranking mostrava, por ordem descendente, as seguintes como as competências mais críticas: (1) Complex Problem Solving; (2) Coordinating with others; (3) People Management; (4) Critical Thinking; (5) Negotiation; (6) Quality Control; (7) Service Orientation; (8) Judgement and Decision Making; (9) Active Listening; (10) Criativity.

Para 2020 o ranking mostra, também por ordem decrescente de importância (apenas faço nota de como ainda consigo ficar perplexo, usando a minha racionalidade em desuso, sobre a forma como se chega a estes rankings): (1) Complex Problem Solving; (2) Critical Thinking; (3) Criativity; (4) People Management; (5) Coordinating with others; (6) Emotional Intelligence; (7) Judgement and Decision Making; (8) Service Orientation; (9) Negotiation; (10) Cognitive Flexibility.

O meu comentário em relação a isto? Bom, em primeiro lugar fico contente por manterem algumas áreas que podem ser endereçadas pelo lado da racionalidade. Quais? O complex problem solving, o decision making e, eventualmente, a parte de negotiation que “se trata” com teoria de jogos. Tudo o resto está do lado das soft skills, ou quase.

Em segundo a minha perplexidade sobre o que será exatamente a cognitive flexibility mas… ainda sou da geração que tem vergonha de perguntar.

Finalmente, a minha pergunta, questão ou o que seja endereçada para a malta da minha geração que anda a fazer e “deitar cá para fora” estes rankings: Não serão radicais de mais? Não é mesmo precisa a capacidade analítica? Nunca se irá precisar da capacidade analítica para nada? Como se treinam as novas gerações em termos do que me parece continuar a ser essencial, a capacidade de abstração? Como e onde aparece isso? Não aparece.

Isto faz-me lembrar o personagem da Galinha dos Ovos de Ouro. Descobre-se que a galinha põe ovos de ouro e fica-se feliz. Que o mesmo é dizer: descobrem-se os soft skills e a seguir procuram aprofundar-se mais e mais como se nada mais houvesse. Não satisfeito, aliás, e de muito baixa racionalidade, o personagem da Galinha dos Ovos de Ouro acaba por matar a própria galinha convicto de que tinha todo o ouro lá dentro. Não precisava pois esperar para ser rico. Matando o bicho todos os ovos futuros estariam na sua mão (e dentro da galinha). Que quero dizer com isto? Que me parece de alguma falta de bom senso. Matar a galinha, claro. Mas também colocar apenas a tónica no lado das soft skills como se não houvesse amanhã ou, simplificando, como se não fosse necessário ter “cérebro racional” para passarmos a ter apenas “cérebro emocional”.

Antes de continuar vamos recordar a história (da Galinha dos Ovos de Ouro, Esopo relembrado) para os que ainda não a sabem.

*************************

Era uma vez uma galinha muito especial. À primeira vista parecia uma galinha igualzinha às outras. Comia milho como as outras galinhas, cacarejava como as outras galinhas, punha ovos como todas as outras… Ora, era mesmo por isso que a galinha desta história era muito especial. Ela punha ovos de ouro.
Quando o dono descobriu, ficou muito contente pois logo pensou que os seus problemas iam terminar.
– Estou rico! Estou rico! Já não vou precisar mais de trabalhar!
A partir daí, todas as manhãs, bem cedinho, lá estava ele à espera que a galinha pusesse mais um ovo, um ovo de ouro brilhante e reluzente.
– Vá lá, galinha! Põe o ovo. Quero guardá-lo ao lado dos outros todos que já juntei.
– Cacaracacá! – Cantava a galinha, muito serena sem perceber a pressa do seu dono. – Se calhar o homem tem fome, coitado!
E lá punha mais um ovo de ouro sem saber que aquilo valia muito, mas mesmo muito dinheiro.
O lavrador ria, todo contente, por poder continuar a aumentar o seu tesouro.
Mas o homem começou a cansar-se de ter de esperar sempre pelo dia seguinte para ter mais um ovo.
– Só um ovo por dia?! Assim nunca mais fico rico.
A sua paciência esgotou-se e teve vontade de ficar rico mais depressa.
Acreditava que dentro da galinha havia um tesouro, que a sua barriga estava cheia de ovos valiosos. -” Vou matar a galinha. Vou abri-la e ficarei rico para sempre. Já estou farto de esperar”.
E a pobre galinha sem saber de nada.
Mal o pensou, logo o fez, mas também logo se arrependeu, pois, assim que viu a galinha por dentro, percebeu que ela era igual a todas as outras galinhas da sua capoeira e que não havia tesouro. Agora, a única coisa que podia fazer com ela era uma rica canja para matar a fome.

*************************

Ou seja, não sabendo como são feitos estes rankings, mas sabendo-os seguramente feitos por cidadãos de gerações anteriores aos millennials, apenas exponho os meus mixed feelings quanto aos resultados. Apressamo-nos, nós geração que “comanda os millennials”, a matar a galinha para expor todo o seu ouro? É sensato abandonar o pensamento analítico que durante séculos foi tido como a variável mais estruturante do ser humano e talvez a competência central em termos de trabalho? Para que o fazemos? Queremos criar soft skills para os millennials porque lhes fazem falta ou porque achamos que não as temos, gerações anteriores, e nos fazem falta a nós?

Mais, e voltando à socialização via tecnologia. Ao contrário do que se possa crer a tecnologia ajuda mais ao isolamento que à colaboração (só observei cerca de 5.000 a 7.000 millennials que terá sido o número de alunos do “milénio” que passou pelas minhas mãos – nascidos a partir de 1980; não tenho amostra suficiente, portanto!). E retira-nos muita da capacidade de dizer e de olhar olhos nos olhos assumindo as consequências do que dizemos e fazemos. Escondidos atrás da tecnologia somos mais relacionais e mais sociais? Desconfio que não. Mas que importa isso se for apenas para dizer que somos modernos?

Da minha análise (racional) diria que estas competências propostas são muito exigentes. E, sobretudo, parecem-me injustas. Injustas, porque não se pode querer tudo isto e a uma velocidade brutal para uma geração apenas: a dos millennials. Primeiro, e como referia, porque nem se sabe bem ainda o que é a geração e como caracterizá-la no contexto do trabalho. Segundo porque estamos a criar uma pressão ciclópica para termos mulheres e homens sociais e tecnológicos, em conjunto, quando não é evidente que o consigamos ter. Terceiro e crítico: quem faz estes estudos e estipula estas competências é quem decide hoje e não são seguramente (ainda) os millennials. Serão mais a X Generation ou os Baby Boomers. Que, de competências sociais e tecnológicas, entre outras, pouco mostraram ao mundo.

Bom sonhar, bom ambicionar, sem dúvida. Mas difícil querer que os millennials e os que vêm da geração Z sejam o que (incluo-me, obviamente, nas gerações decisoras) gostaríamos que fossem. Simplesmente porque não o serão. E mais: se os pressionarmos muito a serem o que não podem ser (ou não querem) talvez se despeçam das empresas sem que percebamos porquê. E despedem-se para gastar o resto da conta bancária a viajar e a ver o mundo. É uma forma interessante de socialização. Mas também não deixa de ser uma forma interessante de procurar uma certa “racionalidade” (equilíbrio) para a loucura que lhes é pedida. Borrifando-se para as competências que devem acumular e que o mundo exigentemente lhes pede. Já disseram várias vezes – múltiplos são os exemplos – que não compactuam com Galinhas de Ovos de Ouro. E que estarão nas empresas para, à luz dos nossos olhos (que os interpretamos), serem pelo menos desconcertantes.

O que me preocupa, e esta é a maior questão de todas, é que as gerações anteriores (X e Baby Boomers), as gerações no poder, não percebem e não querem perceber os millennials. Querem “moldar” esta geração aos skills que acham serem necessários. É esse o ponto que a mim me perturba mais. Todos os outros pontos e competências correm o risco de ficar armazenados na gaveta dos “estudos”. E na gaveta da falta de bom senso quando o que se quer é apenas riscar as competências racionais para passar apenas a ter soft skills. Será ajustado? Diria, pessoalmente, que não. O resultado pode bem ser a pergunta final do título do trabalho de Ana França de 23 de Abril: “Chegar aos 30 sem anel nem emprego fixo: O que pensam os millennials?”.

Ou seja, o que pensam os millennials destas competências? Foram vistos e achados para elas? É que se não lhes perguntaram, convinha. Porque uma das principais razões para não se perceberem os millennials é que tudo se faz sem lhes perguntar nada. Ou muito pouco. E quer-se passar do 8 ao 80 sem uma paragem, manda o bom senso, no 44 (a meio caminho, portanto)?

A minha geração, ou as gerações anteriores, individualistas, excessivamente ambiciosas e possessivas querem asfixiar a geração dos millennials. E os millennials, e bem, não se deixam ir na cantiga. Vá-se lá percebê-los, é o que se diz na minha geração. Aos millennials: não queiram servir de ovos de ouro para a minha geração. Não se deixem perceber. Fujam destas competências onde vos querem engaiolar… para serem livres. Coisa que a minha geração nunca foi nem será verdadeiramente.

Professor Catedrático, NOVA SBE – NOVA SCHOOL OF BUSINESS AND ECONOMICS, crespo.carvalho@novasbe.pt