Gordinho. Ruivo. Com ar de ter comido verduras a menos e nuggets a mais e um aspecto mole de quem não parece aguentar mais do que meia dúzia de passos num dia de Julho em Beja, quanto mais nas terras donde vem a fé que o anima – o fundamentalismo islâmico.
É assim Jordan Horner um dos rostos que simboliza a adesão dos jovens europeus ao que Obama definiu como um cancro (uma das vantagens de o presidente dos EUA não provir do Partido Republicano, ser negro e ainda por cima ter produzido em muita cabecinha europeia uma miragem sobre a semelhança entre a esquerda socialista e os democratas norte-americanos é que Obama pode fazer afirmações deste teor sem que as ruas deste lado do Atlântico se encham de multidões indignadas com a intolerância do cowboy).
Nós, portugueses, temos doze concidadãos nossos a combater no Iraque entre os quais um Fábio que, segundo o semanário Expresso, levou atrás de si apaixonada uma Ângela pois como sempre sucede nestas coisas há umas ‘ângelas’ que tudo sacrificam em nome do amor (nesse aspecto o proverbial egoísmo dos homens preserva-os destes e doutros dramáticos destinos).
Perplexos, os europeus fazem contas aos jovens brancos, negros e asiáticos que nos apartamentos de Londres, Barcelona e Paris cresceram a ver o Pokémon e as versões locais dos “Morangos com Açúcar” e agora rumam àquelas paragens onde se crucificam e degolam pessoas. Não há ninguém que não se mostre chocado com o facto. E preocupado, pois teme-se que entre os que sobreviverem a tal jornada alguns regressem com raiva e formação suficiente para aqui passarem à prática tudo aquilo que entretanto aprenderam sobre como matar o próximo.
Realmente tal opção é chocante mas nada tem de muito novo: boa parte da juventude ocidental ocupa há largas décadas os anos que os velhos dizem ser os melhores da vida a desenvolver um profundo ódio pelo mundo que os viu nascer e que até mais ver é o que de mais tolerante e civilizado a humanidade já produziu. Para sermos realmente honestos teremos mesmo de admitir que em poucos lugares da Terra se terá feito mais apologia da violência do que nas universidades do mundo ocidental.
Durante largos anos os melhores alunos e professores das nossas escolas deixaram-se fascinar por figuras como Estaline e Mao Tse Tung. Muitos levaram essa sua devoção a extremos tão incompreensíveis quanto as imagens de Jordan Horner anunciando a sharia: nos países mais livres do mundo, e que eles acusavam constantemente de serem opressivos, criaram estruturas autoritárias, submetendo-se voluntariamente a regras despóticas de funcionamento que incluíam penosas sessões de autocrítica e em alguns casos simulacros de julgamentos a que chamavam populares.
Este fanatismo levou-os a uma obsessão com a clandestinidade que não se compadece sequer com o sentido de ridículo – em Portugal, nos dias após o 25 de Abril de 1974, quando nas ruas se festejava a liberdade, militantes de organizações de esquerda mantinham-se na clandestinidade garantindo aos familiares que esperavam revê-los que não havia nada a celebrar porque o fascismo continuava. Festivais da canção, filmes inócuos como “Os chineses em Paris” e peças de teatro como “O último tango em Lisboa” foram interrompidos por grupos de radicais furiosos que também entendiam assistir-lhes o direito de agredir o público e participantes no que entendiam ser espectáculos degradantes da burguesia.
O radicalismo ideológico produzia-lhes uma espécie de permanente paranoia litigante que, tal como acontece com os actuais extremistas islâmicos, os levava a manter intermináveis confrontos físicos e verbais com grupos rivais (o direito a usar como símbolos a foice e o martelo, levou em Portugal, no ano de 1976, a confrontos tais entre o PCP e o MRPP que deles resultaram feridos graves e um morto). A linguagem, sobretudo a do ódio parece quase funcionar em eco. Tal como os actuais fundamentalistas também os jovens radicais marxistas animalizavam os adversários: “porcos capitalistas”, “cão de fila do imperialismo” eram algumas das suas expressões dilectas para definir os que tinham como inimigos.
Como sempre acontece no mundo dos radicais, alguns levaram o seu fanatismo mais longe e integraram estruturas terroristas que sequestravam, torturavam e matavam os seus concidadãos. Dirão que não decapitavam nem crucificavam as suas vítimas. Enfim há morrer e morrer e há que convir que morrer com uma bala na cabeça é um avanço civilizacional perante agonizar numa cruz ou ser degolado. Claro que gostávamos de acreditar que aquilo que nos leva a ser capazes de cortar o pescoço a outrem nasce da falta de cultura.
Mas na realidade não foi tanto o horror ao sangue ou a piedade que levou os revolucionários franceses a trocar o suplício da roda pela guilhotina e pelos afogamentos. Ou os nazis alemães a preferirem as câmaras de gás a qualquer outra forma de matar. Ou os comunistas soviéticos a usar a fome. Foi mais prosaicamente a necessidade de matar muito mais pessoas: muitos dos nossos revolucionários precisaram de matar em massa e portanto as chamadas mortes exemplares, com o prévio suplício da vítima, por mais impactantes que fossem (e continuam a ser como os vídeos do ISIS demonstram) do ponto de vista da propaganda e da afirmação do poder, mostravam-se incapazes de responder aos milhares que nos cárceres da Revolução Francesa, nos campos de concentração da Alemanha nazi ou nas aldeias da Ucrânia esperavam pelo seu momento de morrer.
E quando passamos do campo do genocídio para o das mortes exemplares os factos não se compadecem com esta excepção da boa morte que graciosamente concedemos aos nossos jihadistas laicos que davam pelo nome de radicais marxistas: o que distingue a decapitação de James Foley das mortes à machadada levadas a cabo pelos militantes maoistas do Sendero Luminoso ou dos queimados vivos pelos movimentos populares da Bolívia? E qual a diferença, à excepção óbvia da fotogenia e da ideologia dos carrascos, entre ter sido fuzilado pelo Che em La Cabaña ou num qualquer lugar da Síria por um membro do Exército Islâmico?
Nenhuma. Isto do ponto de vista da agonia das vítimas. Já na forma como aqui, no conforto do Ocidente, vemos e julgamos os carrascos há diferenças substanciais. Na verdade não é o punhal das decapitações que nos aproxima ou afasta dos carrascos. Mas sim o seu discurso. E quanto mais ocidental este parecer maior será a nossa tolerância. O que nos leva a condenar ou a tolerar a barbárie não é a barbárie em si mesma mas sim a nossa afinidade com o carrasco. E por isso considera-se natural que andem por aí pessoas envergando a t-shirt do Che e inunda-se de insultos o facebook de uma banda rock que nos idos de 90 (ou seja há duas décadas!) acharam por bem escolher o nome ISIS para divulgar a sua música.
A diferença entre os membros da ETA, do Sendero ou do Baader-Meinhof e os jovens que agora partem de Londres e Sevilha para integrar o Exército Islâmico não é portanto a sua disponibilidade para morrer e matar de formas mais ou menos cruéis mas sim que não nos reconhecemos no palavreado do carrasco de James Foley e Steven Sotloff enquanto que os dirigentes dos movimentos terroristas de filiação marxista, longe de proferirem coisas ininteligíveis aos nossos ouvidos, manejavam e manejam os tópicos do nosso discurso intelectual.
Afinal muitos dos dirigentes destes movimentos eram membros daquilo que nos tínhamos habituado a venerar: o mundo das universidades e da cultura. Por ironia a maioria deles provinha do mundo do Direito e das Humanidades. E talvez não seja coincidência que o Sendero, provavelmente um dos mais cruéis movimentos marxistas tenha sido dirigido nada mais nada menos que por um emérito professor catedrático de filosofia, Abimael Guzmán, e contasse nas suas fileiras com reputados intelectuais, nomeadamente com o premiado escritor Hildebrando Pérez Huarancca que viria a ser acusado de ter comandado o massacre de Lucanamarca que teve lugar em Abril de 1983, na véspera de umas eleições, e em que foram mortos a tiro, por decepação ou por queimaduras 69 pessoas, 18 das quais crianças. E os movimentos populares que queimaram vivos alcaides na Bolívia, ao contrário do que sucede com os autores das crucificações na Síria, logo rotulados como bárbaros, tiveram a legitimá-los numa perspectiva da luta de classes nomes como Boaventura Sousa Santos em estudos como “Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolivia”, cuja leitura recomendo vivamente.
E onde nasceram as Brigadas Vermelhas, que foram capazes de sequestrar e matar um homem como Aldo Moro? Na universidade, tal como o grupo terrorista alemão Baader-Meinhof. E quando falamos de Giangiacomo Feltrinelli falamos do terrorista que foi ou omitimos esse lado e referimo-nos apenas a um dos melhores editores que a Itália já teve? E em Angola quantos premiados escritores integraram a chamada Comissão das Lágrimas, que mandava para a tortura os mesmos a quem na véspera chamavam camaradas? Poderia continuar a dar exemplos mas a crónica já vai longa e eu ainda tenho algo mais para dizer. (Sim, não escapo àquela ilusão dos colunistas que acham que os lêem palavra por palavra até à última linha.)
Em boa verdade é tão só o velho Marx o que falta aos membros do califado para que os passemos a compreender, verbo que no ocidente cada vez significa menos estudar e conhecer, mas sim aceitar. Quer gostemos quer não, boa parte do mundo ocidental achava e acha o marxismo uma ideia moralmente superior e bem-intencionada mas que falha ao ser passada à prática não porque seja geneticamente totalitária mas sim porque os homens, conspurcados pelo capitalismo – ainda e sempre ele, o pecado original da humanidade –, se deixam corromper. Daí as recentes tentativas de enquadrar sociologicamente os jovens que no ocidente aderem ao radicalismo islâmico e o desconcerto resultante perante a evidência de estes não serem pobres nem excluídos mas sim, e tal como os radicais dos anos 60, filhos da burguesia.
Os actuais “sans dents”, para a usar a expressão de Hollande para referir os pobres, não pretendem seguir o exemplo dos seus antepassados “sans culottes” e deixaram o papel de adereço da rua revolucionária ao cuidado da burguesia e dos seus filhos, acabando até nesta última crise económica por se assistir em Portugal ao grotesco espectáculo de generais e coronéis, bispos eméritos, reitores e bastonários apelarem à revolta dos subúrbios e os subúrbios terem-nos deixado a falar sozinhos. Ou, como fazem em França, revoltam-se apostando na revolução “errada”, ou seja votando na extrema-direita.
Por isso, face à condescendência que no passado reservámos a outros radicais, parece-me um progresso a presente condenação que os actuais fundamentalistas merecem. E não deixa de me surpreender positivamente o consenso em torno da necessidade de os terroristas serem monitorizados pelos diversos serviços de informações. Ou será que já esquecemos os paladinos dos direitos humanos que acorriam em defesa de Carlos, o Chacal, e dos seus companheiros mal estes eram perturbados pelas forças policiais nas suas mortíferas deambulações?
Sou até levada a pensar que às ‘ângelas’ e aos ‘fábios’ que sobrevivam a este seu percurso e um dia consigam reflectir sobre a alienação a que chegaram não será reservado pelos meios intelectuais e jornalísticos de Portugal, França, Espanha, Itália… o tratamento que durante décadas nestes países se deu àqueles que conseguiam fugir dos paraísos socialistas – descrédito, ridículo e ostracismo – e que contrastavam com a consagração e admiração reservadas aos intelectuais e políticos ocidentais que após viagens à URSS, Cuba, Coreia do Norte, Albânia, China, Cambodja… e de lá regressavam com relatos eufóricos sobre a perfeição ali atingida. (Até o Barthes, senhores, viu na República Popular da China a antítese da linguagem dogmática!)
O nosso maior problema não é, como sucedeu no passado, a falta de consensos para combater estes radicais mas sim a anomia a que os nossos radicalismos de outrora nos conduziram. Os europeus chamam hoje defesa ao franchising de quem os defenda ou às pressões económicas que apenas são aplaudidas pelos países que não são afectados por elas.
Veja-se o que está a suceder com a decisão do governo francês, na sequência do acontecimentos da Ucrânia, de não entregar aos russos um navio militar, o Mistral, que estes haviam encomendado à França: apenas 24% dos inquiridos num inquérito levado a cabo pelo jornal de centro-direita Figaro aprovaram esta decisão. Quando muito as opiniões públicas europeias aceitam que as suas forças armadas participem em bombardeamentos aéreos desde, claro, que jamais os seus militares sejam feridos ou feitos prisioneiros e não existam fotografias sobre o que sucede em terra.
Por isso o que de mais preocupante Putin nos pode dizer não é quantas semanas demoraria a conquistar Kiev mas sim que, se quisermos e ele também quiser, pode resolver-nos o problema do ISIS ou de qualquer outro ISIS que entretanto apareça.
De querermos mudar o mundo pela força das revoluções acabámos a acreditar que o mundo se muda através de piedosa verborreia ou à força de despejar baldes de água gelada pela cabeça. O que virá seguir não sei mas a mim o que não me sai da cabeça é o fim do Império Romano.