As notícias dos infortúnios dos refugiados não alteraram a relação distante que mantenho com a Síria, pátria do meu avô paterno. Nada que impeça de me furtar ao apoio direto aos refugiados. Sublinho, no entanto, a palavra ‘direto’.
Essa confissão de menoridade moral também não é impeditiva de manifestar incómodos face a retóricas bem-intencionadas habituais na imprensa e nos discursos políticos europeus, ao mesmo tempo que não se vislumbram desfechos satisfatórios para a atual crise humanitária. As práticas quotidianas apontam inclusivamente em sentido contrário, o do alheamento ou mesmo fechamento das sociedades europeias ao acolhimento de refugiados, tendências que agravam as pressões sobre os países do sul diretamente expostos, como a Grécia, forçados a ter de lidar por si mesmos com os aspetos mais sensíveis do fenómeno.
O impasse a que se chegou é paradoxalmente (também) produto de ‘moralismos’ pró-refugiados, até porque é fundamental que se tenha em conta que os europeus foram surpreendidos pela persistência, dimensão, natureza e consequências estruturais de uma vaga migratória com características inéditas. Porque se torna premente gerar respostas bem mais ajustadas, outras possibilidades de relacionamento dos europeus com o fenómeno devem se equacionadas.
Por ter sido até aqui marginalizada, a hipótese mais significativa passa por se transitar da centralidade atribuída a entidades coletivas (‘o estado’, ‘os portugueses’ ou ‘os europeus’ que ‘deveriam ou estão disponíveis para fazer muito mais pelos refugiados’) para a singularidade de cada consciência individual. É substantivamente distinto, por um lado, regatear o sacrifício de terceiros para apoiar causas humanitárias que afetam também terceiros, atitude que, no limite, permite investir retórica para colher elevados benefícios que ajudam ao sucesso de carreiras políticas ou profissionais; ou, por outro lado, cada um impor exigências diretas a si mesmo e aos seus íntimos nas decisões sobre o apoio aos refugiados, com a consciência de que as decisões individuais não devem agravar as condições de vida dos demais.
Sem dúvida que existem estádios intermédios entre um e outro extremos, correspondentes a conquistas civilizacionais das sociedades europeias que nem a atual crise colocou em causa. Entre os exemplos conto as campanhas humanitárias de recolhas de compras de supermercado; o trabalho voluntário em campanhas de auxílio humanitário delimitadas no tempo ou nos objetivos; ou doações monetárias com sentido humanitário.
A questão é que o afluxo em curso de refugiados está a transformar esse patamar civilizacional, até agora elevado, apenas num estádio intermédio do humanismo e da moral coletiva. Pelas suas profundas implicações, nas quais se incluem os destinos da União Europeia, a realidade está a impor aos europeus que avancem para estádios bem mais exigentes. E quanto mais complexa a inevitável carga moral do fenómeno – um contingente significativo de seres humanos em busca de sobrevivência num contexto em que as relações identitárias entre os que chegam e os que acolhem comportam tensões inelidíveis (religiosas, culturais, raciais, socioeconómicas, históricas) –, tanto mais a legitimidade dos apelos ao humanismo necessita de se sustentar em atos, não apenas em palavras.
Por outro lado, para responder a fenómenos massificados o envolvimento das sociedades tem também de ser coletivo. Tal implica, no caso da crise migratória em curso, aprendizagens que permitam aos europeus comuns distinguir o trigo do joio, o viável do inviável, a responsabilidade da irresponsabilidade num patamar da atuação humanitária sem precedentes históricos.
Ainda que compreensíveis, a desorientação dos governos europeus, o resvalar crescente para a radicalização política, as manifestações de rua e, não menos, os silêncios incómodos sugerem que o que está por resolver são incógnitas de ordem moral que, no caso da moral coletiva, são ultrapassáveis quando se caminha para consensualizações partilhadas no quotidiano. Mas não é isso que está a acontecer nas sociedades europeias precisamente porque o fenómeno massificado que serve de referência é, ele mesmo, de difícil tipificação. Oscila entre a fuga efetiva a uma morte cruel no país de origem e um movimento migratório orientado pela busca de melhores condições de vida, neste caso indistinto dos que ocorrem nas mais variadas regiões do mundo. Portanto, não se podem exigir respostas claras a fenómenos que, para o senso comum, também não são claros.
Além disso, sociedades com tradições de liberdade, pluralismo e maturidade cívica perdem funcionalidade se os referentes que as orientam forem apenas impostos de cima para baixo. Eles também têm de ser construídos ou validados de baixo para cima, do quotidiano das pessoas comuns para as elites. É nesta fronteira que os sistemas políticos e sociais ocidentais sobrevivem bloqueadas, posto que há muito os europeus sentem e sabem que parte das suas opções legítimas em matérias sensíveis é por norma cerceada pelo politicamente correto.
A crise dos refugiados transformou-se numa radiografia exemplar dessa situação: ‘Ou concordas de imediato e sem pestanejar com o acolhimento dos refugiados ou não passas de um racista, xenófobo, socialmente insensível’. Ostensivas ou dissimuladas, chantagens moralistas desta natureza não conduzem a bons resultados, para mais quando associadas à génese de um fenómeno.
Aqui chegados, compete a cada um confrontar a sua consciência:
“Estou disponível para acolher refugiados em minha casa? Estou disponível para sacrificar o meu quotidiano familiar habitual e os meus rendimentos particulares em favor de refugiados? Ou irei remeter as responsabilidades para casas e vidas de terceiros; prédios, bairros habitacionais ou escolas que não os meus ou dos meus filhos; instituições de solidariedade social para as quais não contribuo diretamente; o estado?”
O exercício tornará cristalina a esquizofrenia cívica das sociedades europeias, cuja marca são as dissonâncias entre a moral individual e a moral coletiva, subprodutos do poder abusivo dos estados sobre os indivíduos.
As questões colocadas não são meras hipóteses abstratas, uma vez que os rendimentos e as condições de vida da generalidade dos europeus ocidentais são bastante superiores às de muitos outros povos. Mesmo uma família europeia abaixo da média não é verosímil que venha a passar fome ou a ter de viver ao relento por acolher um refugiado ou uma família de refugiados islâmicos do norte de África, nem a Europa acabará sobrepovoada por causa da atual crise.
Mas se pouco ou nada mudou no último ano, bem como porque os indivíduos comuns não são necessariamente imorais ou irracionais, é porque as questões materiais ou quantificáveis são acessórias. Resta o óbvio. As sociedades – ‘pobres’ ou ‘ricas’ – também se movem por referentes existenciais de outra natureza, mesmo em contextos de crise humanitária. Como a todos os povos, aos europeus deve ser garantido o respeito pelas suas características e sensibilidades identitárias, pelas suas tradições culturais ou religiosas, pelos seus hábitos quotidianos, pelas suas expetativas legítimas de vida, pelo que resulta das suas experiências vividas com outros povos ou comunidades, pelos direitos inalienáveis que detêm sobre o seu espaço, entre outros.
Ainda que fossem contempladas leituras antieuropeias da história, o apoio aos refugiados jamais legitima que se atente contra os aspetos referidos e não existe humanismo sustentado em laivos de desrespeito, abuso ou sentimentos de agressão. A questão é que isso é válido tanto para as comunidades acolhidas quanto para as sociedades de acolhimento. Nesse jogo de difíceis e indispensáveis compromissos, os responsáveis europeus e parte significativa das elites têm sido abusivamente seletivos. A disfuncionalidade de muitos ‘moralismos’ resulta de fazerem tábua rasa de aspetos sensíveis das identidades europeias, gerando respostas a fenómenos sociais ou históricos que se podem converter em roletas russas.
Por último, não deixam de ser merecedores do maior respeito os complexos de culpa pelo sofrimento de outros povos que os europeus ocidentais evidenciam, atitude dificilmente verificável em dimensão semelhante em quaisquer outros povos. Convém, todavia, deixar claro que tais complexos de culpa são muitíssimo mais produtos da mais íntima consciência coletiva europeia ocidental, filiada numa matriz filosófica e cristã milenar, e muitíssimo menos produtos de impossíveis imposições externas em matérias de consciência.
No que concerne aos fundamentos da ordem moral das sociedades, não tenho coroas de glória a apresentar resultantes da minha ascendência africana, árabe ou indiana. Certo, certo é que todos perderão se os europeus ocidentais não aprenderem a respeitar-se mais a si mesmos, tanto quanto sempre aprenderam com a história a respeitar os outros povos.