1. Somos um povo iluminado pelos astros. Agora que termina a legislatura, é a hora de o destacar e exaltar. Galgando em pedaladas vigorosas para a liderança da Civilização, os legisladores velam pela higiene mental dos cidadãos (e, bem entendido, das cidadãs), com foco incisivo nos conceitos e no esmero das palavras. Ao mínimo deslize, cairíamos de novo na barbárie. Mas podem as leitoras (também os leitores) descansar, tranquilas (ou tranquilos), que os nossos deputados (e, é claro, deputadas) nunca dormem diante das ameaças e esgrimem como ninguém o sabre certeiro da lei.
Assim nasceu proeza pouco conhecida: a Lei n.º 4/2018, de 9 de Fevereiro, regime jurídico da avaliação de impacto de género de actos normativos. Foi criada a luminosa burocracia que, em avaliação prévia ou sucessiva, perscruta, vigilante, na forma e na substância, todos os actos normativos da administração central e regional e da Assembleia da República. A Pátria pode dormir descansada, confiada aos cuidados implacáveis da nova vaga de zeladoras – e, obviamente, zeladores também.
O diploma inspirará por certo estudos e doutoramentos, nos múltiplos ângulos do amplo olhar examinador. Aqui, quero apenas abraçar a causa do artigo 4º (Linguagem discriminatória): “A avaliação de impacto de género deve igualmente analisar a utilização de linguagem não discriminatória na redação de normas através da neutralização ou minimização da especificação do género, do emprego de formas inclusivas ou neutras, designadamente por via do recurso a genéricos verdadeiros ou à utilização de pronomes invariáveis.”
Aí está o assobio para novo galope sobre a gramática. Já que o Estado pôs a mão na massa pelo Acordo Ortográfico, é oportuno que regule a própria licitude da escrita, banindo de vez usos vocabulares próprios de culturas sexistas, homofóbicas, discriminatórias, em suma, trogloditas.
2. Nesta gesta de elevação civilizacional para “neutralização ou minimização da especificação do género”, a generosidade dos luso-legisladores (e luso-legisladoras, claro) assegurou-nos a licitude dos “pronomes variáveis” – como “quem” ou “alguém” – e de “genéricos verdadeiros”. Nós agradecemos. Ou melhor: agradecemos quanto aos primeiros, mas temos de aprofundar com zelo a desambiguação dos genéricos.
Desde logo, nos substantivos comuns de dois géneros, a proclamação da forma “a Presidenta” impõe outros bravos avanços: o agente/a agenta; o cliente/a clienta; o doente/a doenta; o gerente/a gerenta; o resistente/a resistenta; o servente/a serventa; etc. Do mesmo modo quanto a todos deste grupo, eliminando aparências efeminadas ou asfixias machistas: o anarquisto/a anarquista; o artisto/a artista; o camarado/a camarada; o chefe/a chefa; o colego/a colega; o colegial – a colegial; o compatriôto/a compatriota; o dentisto/a dentista; o fão/a fã; o herege/a hereja; o imigranto/a imigranta; o indígeno/a indígena; o intérpreto/a intérpreta; o jornalisto/a jornalista; o jovem/a jovenza; o juristo/a jurista; o mártir/a mártira; o pianisto/a pianista; o selvagem/a selvagenza; o suicido/a suicida; o taxisto/a taxista; etc. Hesitação não, ambiguidades nunca!
Os substantivos sobrecomuns – que, na escrita retrógrada, apresentam um só género – devem seguir a mesma rota gramaticalmente correcta, distinguindo, como é imperativo, o género a que se refiram. Assim: o algoz/a algoza; o apóstolo/a apóstola; o carrasco/a carrasca; o cônjugo/a cônjuga; o crianço/a criança; o criaturo/a criatura; o defunto/a defunta; o ente/a enta; o estrelo (de cinema)/a estrela (de cinema); o génio/a génia; o ídolo/a ídola; o indivíduo/a indivídua; o monstro/a monstra; o pessôo/a pessoa; o ser/a sêra; o testemunho/a testemunha; o verdugo/a verduga; o vítimo/a vítima; etc. Desta linha só sobrevive “o anjo”, pelo facto incontornável de que não lhe conhecemos o sexo.
3. Por fim, há que banir os epicenos, o mais ominoso rasto cultural da idade das cavernas: substantivos que, nomeando animais, apresentam (vejam lá!) um só género para masculino e feminino. A sua subsistência inspiraria reaccionarismos na nomeação homem/mulher, por exemplo na expressão “direitos do Homem” substituída por “direitos humanos”. São um óbvio perigo de restauracionismo das trevas linguísticas.
Assim, teremos: o abutre/a abutra; o águio/a águia; o andorinho/a andorinha; o aranho/a aranha; o baleio/a baleia; o barato/a barata; o beija-flor/a beija/flôra; o besouro/a besoura; o borboleto/a borboleta; o camaleão/a camaleoa; o carapau/a carapua; o cavalo-marinho/a égua-marinha; o chimpanzé/a chimpanzá; o cóbro/a cobra; o corvo/a corva; o crocodilo/a crocodila; o dromedário/a dromedária; o escorpião/a escorpioa; o falcão/a falcoa; o foco/a foca; o formigo/a formiga; o gaivoto/a gaivota; o girafo/a girafa; o gorilo/a gorila; o hieno/a hiena; o hipopótamo/a hipopótama; o jacaré/a jacará; o jiboio/a jiboia; o melgo/a melga; o mosco/a mosca; o mosquito/a mosquita; o pando/a panda; o peixe/a peixa; o pinguim/a pinguina; o polvo/a polva; o pulgo/a pulga; o rinoceronte/a rinoceronte; o rouxinol/a rouxinola; o sapo/a sapa; o sardinho/a sardinha; o serpente/a serpenta; o tartarugo/a tartaruga; o tatu/a tatúa; o tigre/a tigresa; o zebro/a zebra; etc.
Jamais agradeceremos suficientemente à 13ª Legislatura por jorrar luz nos escuros e pedregosos caminhos da gramática nacional, varrendo o obscurantismo das letras e expurgando de formas traiçoeiras a escrita patriótica.
Obrigado a PS, BE, CDS-PP, PEV e PAN, que aprovaram este indispensável foguete para o progresso. Estamos salvos! – e salvas, é claro.
Nota: este texto, numa versão mais curta, foi publicado inicialmente pelo autor no espaço de crónicas “Aquém-Guadiana” da revista bimestral MAIS ALENTEJO, n.º 150, Julho/Agosto 2019.