Há uns dias, o Presidente dos Estados Unidos disse-se nacionalista. Nacionalista, dizia-se ele, sob aplausos frenéticos da multidão, porque não acredita nisso de por interesses globais à frente de interesses nacionais. Americanos primeiro, claro, que é como quem diz: todos os outros depois.
Eu sou um ingénuo, mas sempre pensei que ser-se de um país é uma casualidade. Tivessem os nossos pais, ou avós, ou bisavós, emigrado anos antes, seríamos de outro sítio – e nem notávamos. Teríamos bebido uma cultura diferente, tido aulas noutra língua, amigos de outras cores, apoiaríamos outro clube e tudo nos saberia ao mesmo e nos seria original.
Ser-se de um país é uma casualidade também porque as fronteiras são, a maioria das vezes, linhas arbitrárias que se desenharam, à espada ou à mesa, a maioria há tanto tempo, e que fazem de uns portugueses, outros marroquinos, de uns americanos, outros mexicanos, mas tivessem as guerras que outros lutaram tido outros fins, e quem sabe dizer o que seríamos, ou se seríamos.
Somos também completamente alheios aos traços com que nascemos. Ninguém escolhe os pais, nem os avós, nem ninguém por aí acima na cadeia genética, a mesma que vai depois determinar o pigmento da pele, a textura do cabelo, a cor dos olhos, a altura, a saúde, e por aí adiante. Patriota? Não: só português. Nasci português como nasci louro e de olhos azuis, escrevia o Mestre Caeiro, observador profissional.
Tudo aquilo com que nascemos é um acaso. Tudo depende da conjugação de um conjunto de fatores aleatórios que nos precederam.
É normal que estas casualidades façam parte da nossa identidade, que nos construamos, até certo ponto, em volta delas. Nem tudo é produto de uma escolha racional. Abraçar com um sentimento de orgulho e amor a rifa que nos calhou é uma forma de gostarmos de nós, de estarmos bem na nossa pele. É também uma maneira de nos ligarmos aos outros, com os quais partilhamos a sorte de rifas parecidas – parecidas, apenas, porque não existem duas rifas exatamente iguais.
Mas parece vir por aí o ressurgimento dos nacionalismos, esse impulso de preservação dos traços originais de um povo que habita um certo território, demarcado pelas tais linhas casuais e eu pasmo-me, por não entender como se faz de uma casualidade trave mestra de um modo de pensar.
Não imagino o que vai na cabeça do texano que nasceu numa casa com vista para o México mas clama com Trump por uma América para os americanos, pelo controlo de uma fronteira que, sorte a dele, não assentou 20 quilómetros a norte fazendo dele mais um dos “ilegais” que arrisca a vida em busca de uma lotaria que não ganhou à nascença.
Os racistas saíram do armário e, espalhando o medo, voltaram a ganhar eleições pelo mundo fora, mas eu pergunto-me o que seria hoje do branco careca que marcha nas ruas de braço levantado se a sua avó tivesse acabado por engravidar daquele senegalês espadaúdo com quem se enrolou na Universidade, que seria hoje seu avô e lhe afagaria afetuosamente o cabelo que nunca teria rapado.
Ai, João, mas o patriotismo, o patriotismo é uma qualidade. Seja. Sejam patriotas, amem o vosso país, amem os vossos símbolos, amem a vossa terra e os vossos conterrâneos e tradições e religiões. Protejam-nas, espalhem-nas, expliquem-nas. Orgulhem-se delas, se elas vos orgulham. Eu adoro o meu país e promovo-o sempre que posso.
Mas sou português por acaso. Podia ser outra coisa qualquer, se os espanhóis tivessem ganho em São Mamede, se os franceses tivessem quebrado as Linhas, se os árabes não tivessem sido expulsos, se a minha mãe tivesse ido trabalhar para a Argentina.
Nascer e crescer em Portugal teve impacto naquilo que eu sou, claro, mas não me define, que eu não deixo, como não tem que definir ninguém o ser-se americano, chinês, negro, baixo ou mulher. Eu posso não escolher o que sou quando nasço, mas daí para a frente, peço desculpa, eu é que conduzo. Julguem-me por conduzir mal, por conduzir devagar, julguem-me até por não conduzir, mas recuso-me a responder por mais que isso. Recuso-me, sobretudo, a ser julgado e a julgar com base em coisas que não se escolhem. Não faz sentido.
Mas eles andam por aí, cada vez mais afoitos, os xenófobos, os homofóbicos, os racistas, os machistas, no fundo um bando de gente que acha que as pessoas se medem por coisas que lhes calharam em sorte na quermesse da vida, como uma criança idiota a perseguir outra a quem calhou uma rifa diferente – e até isto é tão estúpido que nunca aconteceu.
Quão desprovida de méritos tem de ser uma pessoa para querer fazer passar por uma qualidade a casualidade da sua cor, ou do sítio onde nasceu, ou da cultura em que foi educado?
Que feitos alcançou uma pessoa que se orgulha de coisas para as quais não contribuiu?
De que é que tem medo esta gente imprestável? Da diferença? Do desconhecido? Ou de não terem mais para mostrar da vida que aquilo que o acaso lhes deu à nascença?
Julgar o outro por aquilo que não lhe coube decidir é uma maldade inqualificável. Nascemos todos plenamente humanos e diferentes apenas nos detalhes. Extrair consequências desses detalhes aleatórios não é só falta de inteligência, é falta de humanidade.
É o que há, quando o presidente dos Estados Unidos se diz nacionalista e os outros aplaudem. E é o que restará, quando ele, e outros como ele, continuarem a ganhar eleições.
Falta de inteligência e falta de humanidade.
João Marecos tem 27 anos, estudou na NYU, vive em Londres e é advogado na TLDR Global, uma empresa de consultoria na área de blockchain e cryptocurrencies. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.