“Embora se tenham verificado avanços necessários no planeamento, na prevenção, na preparação e na mitigação, a intervenção no território não acontece ainda à escala espacial para ser suficiente. Sem esta escala – na ordem dos 300 mil hectares de vegetação permanentemente geridos, definidos no PNA – doravante, Portugal e os portugueses, confrontam-se com o paradoxo do fogo: ao termos muito sucesso a reduzir o número de incêndios e a área ardida, sem gerir ativamente o pós-fogo, nomeadamente de 2017, e sem intervir com escala na restante área verde, deixámos acumular nos últimos 6 anos vegetação fina, arbustiva e arbórea que irá alimentar incêndios mais rápidos e severos que podem queimar mais de 750 mil hectares num só ano e/ ou destruir locais únicos e ameaçar relevantes infraestruturas e comunidades urbanas”.

Este parágrafo está na página 4 do muito recente Relatório de Actividades/ 2023, do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais, apresentado à Assembleia da República no passado dia 20 de Junho de 2024.

Não há formulação mais oficial e, por isso mesmo, com punhos de renda, de que teremos um problema sério com fogos por volta de 2030, mais ano, menos ano, se não mudarmos de vida, entretanto.

Um ou dois dias antes, o Centro Pinus tinha publicado um relatório que, essencialmente, troca em miúdos os pesados, complexos e desnecessariamente ininteligíveis relatórios de execução do PDR 2020, a bíblia da aplicação dos dinheiros da Política Agrícola Comum.

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Perante a evidência do diagnóstico descrito no primeiro parágrafo, e que é do conhecimento geral há anos – até eu escrevi um artigo em 2016, note-se, antes dos fogos de 2017, que pormenorizava os fundamentos para esse diagnóstico – seria de esperar que as conclusões do dito relatório do Centro Pinus, sobre a aplicação das verbas da política agrícola comum no sector florestal, demonstrassem um forte empenho em levar gestão aos sítios onde ela faz falta, como estratégia essencial para ganhar controlo sobre o fogo.

Nada disso, o que se conclui é que grande parte das verbas para prevenção são gastas no Alentejo e Ribatejo, que é onde as regras definidas para as candidaturas são mais fáceis de cumprir, e não onde existe o problema real de falta de gestão que nos vai conduzindo, passo a passo, para o desastre de 2030, mais ano, menos ano (este tipo de informação está documentado nos relatórios de avaliação dos programas de financiamento, mas raramente é do conhecimento generalizado. É por isso que grande parte das pessoas, incluindo nos partidos e jornalismo especializado, não faz a menor ideia de que a maioria do financiamento para agricultura biológica, por exemplo, é gasto no apoio à produção de vacas no Alentejo).

Logo em 18 de Junho de 2017 escrevi, a pedido de Ana Fernandes, do Público, um artigo a protestar contra a conversa, então dominante, da imprevisibilidade da tragédia de Pedrogão.

Como não sou assinante, não consigo ler o artigo que escrevi, à borla evidentemente, mas sei que nele há este parágrafo: “E é este desprezo pelo conhecimento que existe, e existe mesmo, aliado a uma fobia à avaliação independente de desempenho, que faz com que se possa invocar sempre a imprevisibilidade, como se não houvesse dezenas de textos a dizer que tragédias como a deste fim-de-semana são apenas uma questão de tempo, se a gestão do fogo se mantiver como tem sido”.

Escrevi-o porque sou um grande especialista do assunto?

Não, não sou especialista em fogos, do que sei alguma coisa é de gestão de paisagens, mas leio e ouço, com atenção e há muitos anos, pessoas como Paulo Fernandes, José Miguel Cardoso Pereira, António Salgueiro, Tiago Oliveira, Nuno Gracinhas Guiomar, Marco Ribeiro, Emanuel Oliveira e outros que investigam e sabem do assunto e que se recusavam, na altura, a escrever ou falar em cima da tragédia de Pedrogão, por razões éticas que entendo, mas não subscrevi na altura.

E é por ter especial atenção ao fogo, um processo natural, central na evolução e gestão da paisagem, e ao que sobre a ecologia do fogo escrevem e falam todos os que citei acima e vários outros, que tenho procurado responder à velha pergunta de Lenine “O que fazer?”.

Há já muitos anos que tenho defendido uma solução para a gestão sensata do fogo, no essencial trata-se de pagar um serviço que não tem valor para o proprietário, mas é de interesse geral.

A proposta é demasiadas vezes descartada como sendo uma excentricidade, mas está muito longe de o ser.

De resto, a lista de críticas que costuma ser usada vai variando em função dos preconceitos dos críticos, e muito pouco em função do valor da proposta em si.

O valor a estabelecer para o pagamento desse serviço é a discussão menos importante, muito menos importante que a discussão do mecanismo necessário para a executar e a existência de uma rede de organizações de produtores florestais poderia facilmente ser mobilizada para o pôr em execução.

De resto, tenho-me esforçado por demonstrar que a proposta é perfeitamente razoável, do ponto de vista dos custos potenciais.

A proposta de pagar directamente aos proprietários 100 euros por hectare, de três em três anos, a quem mantenha menos de 50 cm de altura de matos e ervas nos seus terrenos é perfeita e sem problemas de execução?

Não, é uma proposta com alguns problemas de execução, com alguma susceptibilidade à fraude, com alguma dificuldade de verificação, com limitações na resolução do problema, mas tem uma grande, grande virtude: as alternativas são todas muito piores, mais complicadas, menos transparentes, mais caras e com menos resultados.

O programa de transformação da paisagem, anos depois de lançado, e tendo já gasto uns milhões, não tem qualquer tradução concreta na gestão da paisagem.

A absurda legislação de gestão de combustíveis nas imediações de infraestruturas e edifícios, gera uma enorme entropia, custa rios de dinheiro ao Estado, às empresas e às pessoas comuns, com uma utilidade marginal para a gestão do problema.

O reforço e melhoria do combate, que tem atirado com os valores gastos pelo Estado para níveis estratosféricos, se comparados com o que se passava antes de 2003, não só contribui pouco para resolver o problema como o agrava (como se lê no primeiro parágrafo deste post, para quem queira perceber o que é o paradoxo do fogo).

É por isso que acabo um dos meus posts para que liguei acima, dizendo “Se em vez de complicar, mantivermos o foco no problema que queremos resolver – a gestão sensata do fogo em Portugal – não há nenhuma razão para não olhar para esta proposta de forma tão séria como qualquer outra proposta política. Esta proposta tem pelo menos uma vantagem em relação ao que está no programa do governo para gerir o mesmo problema: é uma proposta com uma base técnica e científica sólida, ao contrário das tretas do programa do governo, em que se insiste em manter políticas comprovadamente ineficazes e caras.”

É certo que estava a falar de outro governo, mas nada indicia que vá ser diferente com este governo, o que aliás talvez se possa verificar respondendo a uma questão que retiro de outro dos meus posts: “Ouvi recentemente o Senhor Ministro da tutela a dizer que tem por lá três milhões para finalmente experimentar pagar directamente a gestão aos produtores. Claro que fico satisfeito com o facto de, ao fim de nove anos, já haver a intenção de no futuro fazer qualquer coisa nesse sentido, mas a esperança que tenho de que não seja preciso esperar outros nove anos, e mais uma tragédia, para se fazer alguma coisa consistente, é muito baixa: quase de certeza que vão pegar na ideia, e nos três milhões, e complicar as regras para tentar obrigar as pessoas a fazer o que os técnicos acham que deve ser feito em vez de simplesmente lhes pagar o serviço de interesse colectivo difuso que se pretende que prestem (para quem tiver dúvidas, é olhar para as áreas integradas de gestão da paisagem, que andam há uns cinco anos para trás e para a frente, sem que até agora tenha chegado nada de concreto ao terreno, apesar dos milhões já gastos)”.

Não faço ideia, não tenho nenhuma informação concreta sobre o assunto, mas apostaria o triplo contra singelo que, a esta hora, a tecnoestrutura da administração pública ligada ao assunto já deve concluído que pagar directamente aos produtores não funciona, com base nos resultados de um projecto piloto para o qual desenharam regras que o impedem de funcionar.