À procura de um pormenor para fazer o almoço, acabei por dar uma vista de olhos nas vinte receitas de soufflé do livro de cozinha em que peguei.

Vinte não é um número redondo retórico, são mesmo vinte receitas de soufflé que estão nesse livro, e dei comigo a pensar como se mudam os tempos e as vontades: duvido que hoje alguém fizesse um livro de cozinha com vinte receitas de soufflé.

O soufflé de miolos é que melhor ilustra a distância que separa a minha vida de hoje da vida das pessoas que viveram quando esse livro foi escrito.

E não se trata de nenhuma raridade, é dos livros de receitas mais vulgares e que mais venderem ao longo de dezenas de anos, desde 1925 tem perto de 30 edições, algumas bem recentes.

A mioleira era usada comummente, nomeadamente como uma das primeiras, quando não a primeira, refeição sólida que era dada aos bebés, frequentemente com ovos, dado o seu elevado valor alimentício, em especial o seu conteúdo proteico.

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A questão das proteínas na alimentação era um assunto sério, por isso se dava galinha e arroz de galinhas às mulheres nos períodos em que amamentavam e, logo depois, quando se fazia a transição do leite materno (ou de cabra, quando não havia leite das mães ou de uma ama) para comida de gente.

Nessa altura, era muito recomendada para as crianças de tenra idade a sopa de cabeça de carneiro – os Rolling Stones têm um disco com esse título, “Goats head soup”, um disco menor, diria eu – pelas mesmas razões.

Conta-se na minha família que a minha avó, cozinheira de estalo e mulher prática, detestava fazer essa sopa, mas como os médicos eram muito insistentes nas suas vantagens para o crescimento das crianças, era a primeira sopa que lhes dava.

Como todas as crianças, a minha mãe e irmãos rejeitavam a novidade, habituados que estavam ao leite materno, pelo que a minha avó concluía que as crianças não gostavam dessa sopa e nunca mais lhes dava.

Nesse mundo, a mortalidade infantil era brutal, o conteúdo da alimentação em proteína era frequentemente baixo, apesar do consumo per capita de leguminosas ser bastante maior que o actual, feijão, grão e favas, sobretudo, e isso reflectia-se no desenvolvimento de toda a população, incluindo na altura média dos portugueses.

Acredito que para quem, como os que participam nas acções da Climáximo, nunca conheceu esse mundo, e que cresceu a consumir bananas como fonte de proteína, com a maior das naturalidades, seja difícil entender toda a extensão das alterações que ocorrem nos últimos cem anos, tendo por isso pouca consciência do que verdadeiramente significam as propostas que defendem.

A alteração na vida quotidiana das pessoas comuns que exigem, em especial para a metade da população que vive abaixo da mediana do rendimento, é muito mais profunda do que nos pretendem fazer crer.

O abandono das energias fósseis sem alternativas consistentes não se traduz apenas em menos viagens de avião, menos quilómetros de carro, mais consumo de produtos locais, e essas coisas que nos parecem defensáveis.

Traduz-se também em menor capacidade de produzir alimentos, porque os adubos azotados de baixo custo que a generalização do processo de Haber-Bosch permitiu, são hoje a base de uma agricultura capaz de alimentar muito mais gente que aquela que era possível alimentar há cem anos atrás, quando as famílias desesperavam por conseguir dar proteína suficiente às gestantes para que os fetos se desenvolvessem adequadamente, às mães recentes para que conseguissem produzir leite suficiente, e aos bebés para que o seu desenvolvimento lhes permitisse escapar à morte prematura, que em qualquer caso, nessa altura, tinha taxas que hoje achamos inaceitáveis.

É que a produção desses adubos depende de reacções químicas fortemente consumidoras de energia.

O que as pessoas que vivem na ilusão da catástrofe futura que as faz aderir à Climáximo aparentemente desconhecem é a catástrofe do passado a que fugiram, e por isso não sabem que não são vítimas nenhumas das gerações anteriores, pelo contrário, têm a sorte de ter nascido na melhor época histórica para nascer, a que alimenta mais gente, a que cura mais gente, a que previne mais doenças, a mais segura, a de maior equilíbrio de género, a de maior desenvolvimento e liberdade pessoais.

Talvez seja a altura de lhes dizer que, por estranho que pareça, afinal a mioleira faz uma grande falta, se não em soufflé, ao menos dentro da cabeça.