É muito irritante a atitude daqueles condutores que, fazendo pisca para um lado, viram para a direcção oposta, atrapalhando o tráfico, como dizia, na Construção, Chico Buarque. Algo semelhante acontece na Igreja, quando são dados sinais contraditórios sobre a mesma questão, porque uma tal ambiguidade causa, naturalmente, perplexidade e confusão entre os fiéis e os não crentes.
Num encontro, à porta fechada, com bispos italianos, no passado dia 20 de Maio, o Papa Francisco fez um comentário que correu mundo, talvez por ter usado uma expressão depreciativa, para se referir às pessoas com tendência homossexual (Observador, 27-5-24). De acordo com uma instrução de 2005 do dicastério para o clero, que foi reafirmada pelo Papa Francisco, em 2016, esses fiéis, como aliás as mulheres, não podem receber o sacramento da Ordem, nem devem ser admitidos nos seminários, sem ofensa da sua dignidade, que a Igreja reconhece integralmente.
Segundo notícia divulgada no passado 4 de Junho pela Infovaticana, o Papa Francisco respondeu publicamente a uma mensagem que lhe foi dirigida, através do diário Il Messaggero, por Lorenzo Michele Noé Caruso, um jovem de 22 anos que, por se afirmar homossexual, foi impedido de prosseguir a sua formação sacerdotal. Ou seja, a sua saída do armário implicou a sua saída do seminário.
Na sua resposta, o Santo Padre, depois de lhe dizer que o clericalismo é “uma praga” e uma “mundanidade feia”, acrescentou: “Irmão, vai para a frente com a tua vocação”. Ora, esta indicação contradiz os critérios que o próprio, enquanto Papa, determinou que devem ser observados nos seminários católicos.
Todos os baptizados são chamados à santidade e ao apostolado, mas não do mesmo modo: uns como leigos no meio do mundo, outros como religiosos e outros ainda como sacerdotes. Como recordou o Papa Francisco na sua resposta ao ex-seminarista, “Jesus chama a todos, a todos. Alguns pensam que a Igreja é uma alfândega, o que está errado. A Igreja deve estar aberta a todos.” Todos são chamados à santidade e ao apostolado na Igreja, mas nem todos são chamados a tudo, pois cada qual deve seguir o seu próprio caminho.
Nenhum seminarista, nem aliás ninguém, tem direito a ser padre, porque é ao bispo que corresponde chamar quem entenda apto para o ministério sagrado. Nessa escolha há critérios a ter em conta, nomeadamente, os que mais directamente dizem respeito à vida sacerdotal. Quem não consegue viver em celibato é óbvio que não deve ser admitido às ordens sagradas. Quem também não logra praticar a pobreza própria do estado sacerdotal, nem a obediência devida ao seu bispo, também não pode ser ordenado presbítero, porque a Igreja, à qual cabe o discernimento em relação às vocações eclesiais, não reconhece nessa pessoa os indícios de um chamamento divino para o sacerdócio católico.
Note-se que não se trata de nenhuma injusta discriminação contra quem tem tendência homossexual, porque tanto dá o sexo das pessoas pelas quais o candidato em questão se sinta atraído, embora esta diferença não seja, em termos morais, irrelevante.
A pertença à hierarquia, por via do sacramento da Ordem, estabelece uma distinção essencial entre os fiéis, porque o sacerdócio ministerial é de uma natureza diferente do sacerdócio comum de todos os baptizados. Mas a hierarquia obedece a uma razão de serviço, ou funcional, e o que verdadeiramente importa é a santidade. Os maiores santos da Igreja católica – Nossa Senhora e São José – não eram sacerdotes, mas leigos casados e, no entanto, não há Papa, bispo, sacerdote ou religioso que se lhes compare em virtude.
Há uma grande variedade de vocações laicais: a maioria são para o matrimónio, mas também há leigos que permanecem celibatários no meio do mundo, porque Deus os chama a essa condição, nomeadamente por, mesmo não sentindo atracção pelas pessoas do mesmo sexo, não se sentirem chamados para o caminho santo do matrimónio cristão.
Em relação ao ex-seminarista Lorenzo e à resposta pública do Papa, compreende-se a decepção do jovem e que Francisco o tenha querido consolar. Mas já não parece aceitável que o ex-seminarista tenha recorrido à comunicação social, nem que o Santo Padre lhe tenha respondido por esse meio, porque as questões pastorais pessoais exigem proximidade e discrição: não se discutem na praça pública. E, se Francisco quer intervir neste caso, pode fazê-lo pelas vias institucionais, pois o bispo e o seminário em questão, em última instância, dependem do Papa. Portanto, teria sido mais curial e, até, mais sinodal ouvir o bispo e os responsáveis do seminário em questão e, com eles, encontrar uma solução que não desmentisse os critérios por ele próprio estabelecidos para os candidatos ao sacerdócio. Não obstante a caridosa intenção de Francisco, a verdade é que a sua resposta pôs em cheque o seu magistério sobre esta questão e desautorizou publicamente o bispo e o seminário em causa … por terem aplicado a normativa papal! Pelos vistos, o não é não, mas também pode não ser não.
Recentemente, um formador de um seminário português disse-me que, pela mesma razão que levou à saída de Lorenzo, um seminarista tinha deixado a instituição. A uma paroquiana, que se indignou com este facto, o mesmo padre perguntou:
– Gostaria que ele casasse com a sua filha?!
– Não, isso não!
Foi quanto bastou para que aquela boa mãe percebesse que nem todos são chamados para o sacerdócio, como nem todos têm vocação matrimonial. A missão dos seminários, e dos que têm a graça de estado para discernir as diferentes vocações eclesiais, é ajudar cada qual a encontrar o seu caminho na Igreja. Jesus chamou os que quis (Mc 3,13), que não eram nenhuma elite (1Cor 1, 26-29), mas que também não eram todos os que queriam ser seus discípulos (Mc 5, 18-19). De facto, “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos” (Mt 22, 14).