Não sei ainda, enquanto escrevo, quem ganhou as eleições presidenciais americanas, e já passaram dois dias desde a votação. Talvez o leitor, quando ler isto, já saiba. Mas saberá também outra coisa: é que não era assim que as coisas se deviam ter passado. Durante meses, comentadores e sondagens prometeram-nos que as eleições americanas deste ano não seriam mais do que uma oportunidade para o povo americano, em massa, erradicar Donald Trump. Que outro destino poderia ter um “louco”, um “fascista” e um “racista”, a não ser a humilhação de ser enxotado por unanimidade? Acontece que nada foi assim. Trump teve mais votos do que em 2016, ganhou os Estados tradicionalmente republicanos, e deu luta nos Estados tradicionalmente democratas que conquistara há quatro anos. Para grande indignação dos que se julgam donos dessas “minorias”, terá até aumentado a sua percentagem de votos entre os eleitores que se identificam como latinos, afro-americanos (de 13% para 18%) e LGBT (28%). Da mesma maneira, o Partido Republicano também não se extinguiu por ter seguido Trump. As eleições legislativas que decorreram ao mesmo tempo que as presidenciais foram um enorme fiasco para os Democratas. A revolução legislativa com que a esquerda ameaçava os conservadores não vai ser possível. E a probabilidade de os Republicanos reconquistarem o Congresso em 2022 é agora maior. Como já lamentou o Guardian, no seu estilo mais soturno, Trump até pode ir-se embora, mas o Trumpismo ficou.

Porque é que isto não foi previsto? Não basta, como é costume agora, discutir técnicas de sondagem. Teremos de falar sobretudo da estratégia do establishment Democrata, aliado ao mais desaustinado radicalismo do seu partido, para derrubar Trump, e da cultura política que inspirou essa estratégia. A estratégia não teve muita novidade. Foi a mesma com que os Democratas confrontaram todos os presidentes republicanos de que me lembro. Assentou num truque muito velho e muito básico: reduzir o presidente à caricatura de um Hitler enlouquecido, de modo a que, por arrastamento, todos os seus eventuais eleitores e apoiantes pudessem ser pintados como “deploráveis”, “indecentes” ou “doidos”. Sim, as provocações de Trump facilitaram a campanha. Mas Ronald Reagan ou George W. Bush, sempre respeitavelmente presidenciais, receberam o mesmo tratamento. No caso de Reagan, muito antes da “polarização” que agora dizem que começou nos anos 1990.

Quatro anos depois da eleição de Trump, os EUA não são o Terceiro Reich, tal como não eram no fim das presidências de Reagan ou de Bush. A III Guerra Mundial também, mais uma vez, não começou. Etc. Como interpretar então a monótona demonização dos presidentes republicanos? Um simples truque de marketing político? Talvez seja mais do que isso. Notem este pormenor: mesmo os comentadores da esquerda que evitam, por racionalidade ou cortesia, tratar os seus adversários como “indecentes” ou “loucos”, nem por isso resistem à tentação de os desqualificar. Os eleitores de Trump, na versão mais benevolente, seriam gente atormentada pela modernidade. Atrasados, desajustados – em suma,  reaccionários. Foi assim que, em 2016, se fez muito caso de uma suposta preferência dos trabalhadores de indústrias em crise por Trump: uma classe condenada, e portanto atreita a opções irracionais. A tentação de estigmatizar Trump e os seus eleitores não vem apenas da fúria da competição partidária, mas da tendência da esquerda, enquanto proprietária exclusiva do “progresso” e do “bem”, para identificar qualquer oposição como o resultado de um defeito intelectual ou moral.

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