Reversão de tanta coisa, de uma só vez? Cedências sucessivas ao PCP? Picardias com o FMI? Confrontos com a Comissão Europeia? Que sentido faz tudo isto? Estarão malucos?
Não, eles não estão malucos.
Maluco estava quem acreditou que o PS sofria apenas do mal da oposição, mas que lhe bastaria chegar ao governo para sentir outra vez a responsabilidade, compreender os limites, reconhecer os constrangimentos. Doce ilusão. Durante quatro anos, os líderes do PS renegaram o memorando que o seu próprio governo negociou, atribuíram todas as dificuldades do país a uma conspiração “neo-liberal”, e cultivaram com esmero um ódio teológico à “direita”. Talvez não tenha chegado para convencer o eleitorado, mas chegou para se convencerem a si próprios de que valia tudo para afastar a maioria PSD-CDS, e que inverter as suas políticas era necessário, mesmo que não fosse realista. Que poderia um líder do PS fazer, depois de quatro anos de anti-austeridade?
Não, eles não estão malucos.
Maluco estava quem pensou que o apoio do PCP e do BE não teria consequências, nem custos. Era apenas o “alargamento da democracia”, iria finalmente comprometer comunistas e radicais na governação e iniciá-los na responsabilidade e na sensatez. Pouca gente quis admitir que o PCP e o BE não chegaram ao poder por terem mudado de ideias ou de métodos, mas unicamente porque um líder do PS derrotado nas eleições precisou dos seus votos para ganhar no parlamento. Se alguém teve de mudar até agora, foi o PS, como se viu no caso da educação, onde já quase renegou todo o seu passado governativo. É óbvio que conservar o braço sindical do PCP tem um preço, e é óbvio que o BE precisa de uma guerra com a “Europa”, até para justificar algumas votações. Mas que alternativa tem António Costa, depois de perder as eleições?
Não, eles não estão malucos.
Maluco, acima de todos, estava quem não aprendeu a verdadeira lição da Grécia. Para muita gente, a Grécia demonstrou que o radicalismo e o populismo, num país dependente de ajuda externa, servem apenas para dobrar as aflições. De facto, demonstrou. O Syriza e os seus aliados de extrema-direita começaram por anunciar o fim da austeridade, anular reformas, e inverter privatizações, para acabarem a agravar a austeridade, a retomar reformas e a prosseguir com privatizações. Visto de longe, pareceu o descrédito total das plataformas populistas e radicais. Mas que aconteceu a seguir? A seguir, o Syriza ganhou as eleições e, passado um ano, continua no poder. Tsipras mentiu, desdisse-se, fez marcha atrás, completou a ruína da Grécia, abandonou os últimos farrapos de soberania nacional – mas os eleitores mantiveram-no no governo. Não foi por acaso: Tsipras fez entrar os gregos numa espécie de II Guerra Mundial imaginária, em que se reservou o papel de “resistente”, e obrigou os seus adversários a fazerem de “colaboracionistas”. António Costa está a seguir a verdadeira receita eleitoral do Syriza: não consiste em pôr termo à austeridade ou à dependência, mas em encenar um confronto internacional em que os erros e as mentiras do governo passem por feitos patrióticos, e em que as críticas e os reparos das oposições figurem como actos de alta traição. Já era a fórmula de Hugo Chávez, que ele aliás copiou de Fidel Castro. O patriotismo, como ensinou o Dr. Johnson, continua a ser o último refúgio dos velhacos.
É por isso que durante esta semana toda a gente esteve preocupada, menos o governo. Se puderem fazer de conta que a “Europa” cedeu e aceitou um “acordo”, voltarão a Lisboa como Nuno Álvares após Aljubarrota. Se não conseguirem, dirão que bem tentaram, que esteve quase, mas que foram traídos pelos descendentes de Miguel de Vasconcelos, agora “neo-liberais” e ao serviço da Alemanha. Não, eles não estão malucos. Apostaram apenas em que somos parvos.