“Pus-me a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos métodos? Com certeza que deveriam ser.”
Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista
Publicado em janeiro de 2015, Submissão de Michel Houellebecq é um livro a que vale a pena regressar. Não só pelo estilo literário e o uso sublime da língua e da ironia do escritor francês, mas também porque Houellebecq se revela um leitor perspicaz dos nossos tempos, confrontando-nos com o mais fundamental de todos os dilemas: o da nossa identidade, pessoal e coletiva. O argumento do livro é conhecido: nas eleições presidenciais francesas de 2022, o crescimento da extrema-direita origina o habitual cordão sanitário republicano, que leva à presidência o líder da Fraternidade Muçulmana. A consequência é a transformação da república francesa em república islâmica, perante a progressiva submissão dos franceses.
O tópico da presença muçulmana na Europa é frequentemente revisitado e tem sido radicalizado em torno da ideia de Grand Remplacement (expressão popularizada com a obra de Renaud Camus, de 2011, e que tem sido aproveitada na campanha presidencial por Éric Zemmour). Mas Houellebecq dispõe a questão de modo mais desafiante: o fim da cultura europeia resultaria da própria ratoeira democrática, que coloca a legitimidade do poder na decisão da maioria, tornando possível que a vitória democrática caiba a um partido que representa uma cultura alternativa aos valores ocidentais. Afinal, e como refere Houellebecq, a transcendência é uma vantagem seletiva: as comunidades que mantêm uma narrativa religiosa reproduzem-se mais, aumentando as suas hipóteses de sobrevivência.
É interessante notar como, nestas eleições ficcionadas, os primeiros a fugir de França são os judeus, que migram em larga escala para Israel. Sentem-se ameaçados pelas possibilidades de vitória, seja ela da Frente Nacional ou da Fraternidade Muçulmana, e a história já lhes deu demasiadas oportunidades de aprendizagem. Israel representa a sua salvação, não só física como cultural, constituindo uma espécie de Heimat a que podem regressar.
Submissão é um exercício literário e não podemos, nem devemos, analisar o livro como se se tratasse de uma obra de teoria ou ciência política. Ainda assim, permite que nos confrontemos com o que significa a identidade europeia, os seus valores e as suas conquistas, considerando a nossa história e as nossas tradições. Em linha com o conservadorismo reacionário francês, Houellebecq apresenta-se como um crítico da modernidade, e em Submissão é particularmente evidente a desaprovação do individualismo, da destruição do espírito comunitário e da fragilização das tradições familiares e religiosas – e a anunciação da decadência da civilização europeia no caminho designado como progresso. A esta luz, o término desse caminho significa a estranha morte da Europa, para usar a formulação de Douglas Murray.
Não precisamos então de subscrever a teoria da grande substituição para reconhecermos a importância do tema e o modo como a questão identitária é hoje central para a nossa reflexão sobre a Europa e o seu futuro (em que Europa e União Europeia se confundem). Essa reflexão deve ser empreendida considerando dois eixos principais: a política de imigração e o multiculturalismo – isto é: o tipo de políticas públicas que queremos estabelecer para quem quer entrar na Europa e o tipo de políticas públicas que queremos adotar para quem ficar dentro das nossas fronteiras.
O tema ganhou maior produção académica após a crise dos refugiados de 2015, mas o problema identitário já estava presente na Europa há pelo menos duas décadas. Os sintomas foram-se fazendo sentir, designadamente com o crescimento de partidos de cariz identitário, geralmente eurocéticos – mas o mais importante acontecimento talvez tenha sido o Brexit. Embora o resultado do referendo tenha recebido o contributo de muitos fatores, a questão da imigração ocupou um lugar central, tornando evidente um problema que as elites políticas europeias preferiram ignorar. Na verdade, as comunidades não podem ser pressionadas até ao ponto de sentirem a sua sobrevivência perigar – a partir desse momento, começam a resistir àquilo que identificam como uma ameaça.
Ivan Krastev, cientista político búlgaro, nunca fugiu a esta análise. Em After Europe, mostra-nos o problema da perspetiva da Europa do leste: “Quando vemos na televisão cenas de idosos locais a protestar contra o estabelecimento de refugiados nas suas vilas despovoadas, onde nenhuma criança nasce há décadas, o nosso coração sente pelos dois lados – pelos refugiados, mas também pelas pessoas velhas e sozinhas que têm visto o seu mundo desaparecer. Vai sobrar alguém para ler poesia búlgara daqui a cem anos?”
Atendendo ao que tem acontecido nas últimas décadas, devemos questionar o sucesso das políticas europeias de imigração – mas também das políticas de multiculturalismo, que recusam o assimilacionismo e visam a integração da diferença cultural através do espírito europeu de inclusão. Recorramos à distinção efetuada por David L. Miller entre multiculturalismo enquanto política pública e multiculturalismo enquanto ideologia. Embora as políticas multiculturalistas visem objetivos nobres e que resultam da própria cultura europeia, a dimensão ideológica tem um efeito perverso: ela produz uma desvalorização do legado nacional. Como diz Miller, “uma cultura nacional pressupõe inevitavelmente ter orgulho no que a nação conseguiu historicamente, quer se trate de desenvolvimentos na arte e na ciência, da construção de um império ou da defesa de uma fronteira anterior”. Devemos naturalmente ser críticos da nossa história, mas não podemos repudiar os nossos valores e desvalorizar as nossas conquistas para acomodar as identidades culturais migrantes. Em particular, “não pode ser exigido à maioria que pare de valorizar aqueles elementos que, até aos dias de hoje, a definiram como pertencendo a um povo particular.” E entre esses elementos está a religião.
Por que razão é perversa a desvalorização contínua das tradições e dos valores europeus? A resposta prende-se com a herança civilizacional europeia: os valores europeus garantiram um conjunto de direitos e liberdades emancipatórias, em contexto de sociedade aberta, que não aconteceram em qualquer outra tradição. Se a inclusão significa desvalorizar estas conquistas e estes valores, então tem de haver algo de errado com essa inclusão, como fica demonstrado pela polémica causada pela recente campanha do Conselho da Europa.
Mas também a proposta da comissária da UE para a igualdade nos deve alarmar: as mudanças de linguagem são apresentadas como visando a inclusão da diversidade, mas acabam por se traduzir no apagamento das nossas tradições e do nosso passado, como o Papa Francisco chamou a atenção. Tomar este caminho de desvalorização significa o suicídio da civilização europeia – e essa morte é particularmente punitiva para os grupos que beneficiaram de uma emancipação de que não gozam nas outras culturas.
É o caso, claro, das mulheres. E o problema para as mulheres é que, ao contrário da comunidade judaica em Submissão, não há um Israel para nós. Não há uma Heimat que nos garanta o reduto de liberdade feminina que temos hoje no espaço de tradição europeia – onde podemos, livremente, desenvolver o projeto de vida que desejamos. Apesar de todos os seus problemas, a civilização europeia representa uma história de que nos devemos orgulhar e que nos estimula a resistir aos ímpetos iliberais que nos ameaçam. Celebrar as nossas tradições, como o Natal, pode ser essa forma de resistência. Votos de um feliz Natal!