1. Há os betos de Cascais – e agora descobrimos como são os betos de São João da Madeira. Sobretudo depois de terem sido atropelados por uma greve de camionistas.
Já sabíamos que o governo de António Costa consegue ser sempre apanhado em contra-pé ao primeiro sinal de uma crise. Lembramo-nos dos incêndios de Junho e Outubro de 2017. Lembramo-nos de Tancos (com o PM de férias). Temos bem presente os conflitos dos enfermeiros e dos professores.
Sempre que o vento não sopra de feição, o barco adorna perigosamente. E tudo se complica ainda mais quando o epicentro dos problemas não está no eixo Terreiro do Paço/São Bento. Como agora sucedeu. Afinal, onde raio fica Aveiras?
Julgam que exagero? É ver a declaração matutina de Pedro Nuno Santos, o jovem turco recentemente promovido a ministro das Infraestruturas e da Habitação. Desde o famoso “minha senhora, não me faça rir a esta hora” do primeiro-ministro na madrugada dos trágicos incêndios de Outubro de 2017 que não se recordava de ouvir nada tão desastrado – e, ao mesmo tempo, com tantas preocupações de manter intactos os pergaminhos “de esquerda” do político que se tornou famoso por garantir que conseguia por as pernas dos banqueiros alemães a tremer.
Numa mesma declaração de poucos minutos conseguiu elogiar o sindicato por cumprir os serviços mínimos e elogiar o governo por ter decretado a requisição civil por falta de cumprimento dos serviços mínimos. Ao mesmo tempo que era obrigado a referir o civismo dos grevistas, não conseguia deixar de prestar vassalagem ao sindicato da CGTP que não esteve nas negociações e cujo sectarismo terá sido mesmo uma das razões do aparecimento do novo sindicato e desta greve, pois o seu coração bate mesmo pela geringonça. Já para os portugueses, que viveram dias de incerteza, só foi capaz de ter umas breves palavras no final, enquanto não resistia a deixar uma picardia dirigida às oposições.
Na verdade não devemos surpreender-nos: este típico produto das juventudes partidárias, que cresceu e constituiu família no aparelho do partido, que de experiência governativa só tinha, até há poucas semanas, a das negociações com as lunáticas do Bloco e os obstinados do PCP, o primeiro choque com a realidade ser logo com camionistas é uma prova de fogo. Demasiado indigesta, ficou provado, para o filho de uma família burguesa de São João da Madeira.
2. Podia ter sido de outra forma? Podia. Tinha de poder. Basta pensar que a greve fora anunciada a 1 de Abril. Ou seja, não devia ter apanhado de surpresa quem tem por obrigação tutelar um sector tão sensível como este. Um sector onde, há onze anos, uma outra paralisação também criara o caos. Foi em 2008 e o curioso é que, na altura, quem protestava eram os patrões da ANTRAM, os que agora não se queriam sentar à mesa das negociações.
Mas não. A primeira abordagem do Governo a esta crise foi a de que “era uma coisa entre privados”. Chegou a verbalizá-lo. O que é naturalmente um disparate e uma omissão das responsabilidades executivas. Por esta lógica se houver uma greve na EDP, empresa privada, e o país ficar sem electricidade, o Governo intervém de forma decisiva quando? Ao terceiro dia, como desta vez, como se fosse sempre Páscoa? E se a greve for em todas as farmácias, que também são privadas?
Podia multiplicar os exemplos, mas a questão óbvia que se coloca é a seguinte: se ontem ao fim do dia havia um plano de 315 postos prioritários e uma imposição de racionamento de 15 litros por viatura, por que motivo é que esse plano só apareceu depois da inevitável corrida à bombas de gasolina?
Não, não tinha de ser assim. Até porque o que vimos antes oif um dos mais caricatos documentos legais jamais produzidos no nosso país, aquele que procedeu “à requisição civil dos trabalhadores motoristas em situação de greve”, nomeadamente à alínea b) dessa Resolução do Conselho de Ministros n.º 69-A/2019, onde se estabelece que, fora os serviços prioritários, os serviços mínimos para o consumo geral só se aplicam ao “abastecimento de combustíveis aos postos de abastecimento da grande Lisboa e do grande Porto, tendo por referência 40 % das operações asseguradas em dias em que não haja greve”. Sim, leram bem: grande Lisboa e grande Porto, o resto do país é paisagem. Literalmente paisagem. Sendo que no resto do país é onde não há transportes públicos (nem passes sociais) e onde mais as pessoas sentiriam a ruptura no abastecimento de combustíveis.
No universo cada vez mais endogâmico em que se transformou o Governo, e de que Pedro Nuno Santos é um expoente, o absurdo consagrado naquelas linhas só comprova que já nenhuma luz vermelha se acende para sinalizar quando algo é mesmo… absurdo.
Um Governo competente teria antecipado os problemas de uma greve anunciada há mais de dez dias, teria cuidado de verificar os serviços mínimos de bens essenciais e não deixar isso “a uma coisa entre privados” e não teria apenas corrido atrás do prejuízo. Mas não temos um Governo competente, temos antes gente habilidosa.
Quanto a Pedro Nuno Santos, será sempre mais fácil libertar-se do Porsche que uma vez comprou com o dinheiro da família mas caía mal nos seus pergaminhos “de esquerda”, do que perceber a rijeza dos homens de coletes amarelos que por estes dias se abrigavam da chuva debaixo de um viaduto ali para os lados de Aveiras.
3. O aparecimento de novos sindicatos como o que convocou esta greve, assim como aqueles que organizaram a greve dos enfermeiros, e ainda alguns que estão a desestabilizar o “império” de Mário Nogueira, é um importante sinal dos tempos – sobretudo destes tempos de geringonça.
Décadas a fio habituámo-nos a que havia os sindicatos ligados ao PS e, em menor grau, ao PSD, que se filiavam na UGT e faziam acordos de concertação social, e que havia os sindicatos do PCP, organizados na CGTP, entrincheirados no sector público, e que faziam pelas suas corporações. Com a geringonça este sindicalismo político e politizado, burocrático e funcionarizado, perdeu o pé. Sobretudo quando se foi percebendo que havia uma enorme distância entre as expectativas criadas e aquilo que estava realmente a ser dado pela (agora cinicamente desmentida) “viragem da página da austeridade”.
Num país com uma baixíssima taxa de sindicalização, alguns destes novos sindicatos surpreenderam pelos níveis de adesão. O que só se explica por serem de novo sindicatos no verdadeiro sentido do termo, e não meras extensões de partidos, para mais partidos comprometidos com o poder do momento.
Mas atenção: a maior parte destas organizações seguem ainda o padrão tradicional do sindicalismo, concordemos ou não com as suas reivindicações. A forma como surgem e a mobilização que conseguem é que mostram que há muito desconforto e muita raiva contida por baixo das águas aparentemente paradas do paraíso lusitano nos andam a vender todos os dias.
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