Pois era, eu ia escrever sobre a extraordinária ironia subjacente ao facto de ser de Londres e também de Paris e não da Jordânia, do Egipto ou até mesmo da Cisjordânia que chegam imagens de milhares de manifestantes exigindo o fim da intervenção militar israelita em Gaza. Ia até sugerir aos manifestantes que nas próximas passeatas em vez de invectivarem Israel se dirigissem às embaixadas do Egipto e tentassem sensibilizar os senhores embaixadores para a importância humanitária de uma das revindicações do Hamas logo rejeitada pelo Egipto: que lhes construam em Gaza um porto e um aeroporto. E já agora, acrescento eu, que sejam amnistiados os dirigentes da Irmandade Muçulmana, aliados do Hamas, que o novo governo do Egipto condena à morte às centenas para se poupar a mais trabalhos. Mas a imagem de uma mesa atulhada de pingos de tocha, jesuítas, pitos de Santa Luzia, fatias do bispo, pudim abade de Priscos e biscoitos do cardeal priva-me da concentração necessária a tal exercício.

Depois tentei de novo afivelar a compostura devida a quem escreve. E avançar para outro tema. Na sua coluna de opinião, aqui no Observador, José Manuel Fernandes perguntava “António Costa quer ser o homeminvisível?” Se bem que não discorde do texto, o que para o caso não tem qualquer relevância, apetecia-me acrescentar-lhe um parágrafo e explicar que António Costa está a ser vítima do ‘efeito Quadratura do Círculo’. Ou seja, durante anos, sentado diante de pessoas que não são da sua área política, tratado com condescendência por Pacheco Pereira e alguma bonomia por Lobo Xavier, António Costa viveu na ilusão de que debatia. Nada mais enganador: ali não se debate. Gerem-se intervenções. Daí não viria mal ao mundo e muito menos ao programa caso António Costa se tivesse mantido como segunda figura. Ora acontece que António Costa saiu pelo seu próprio pé dessa redoma sempre acarinhada pelos jornalistas e pelas oposições onde vivem “os segundos”. E ia eu explicar que agora Costa ou se adapta ao seu novo estatuto ou acaba como Soares na última vez que se candidatou à PR, clamando pelos jornalistas da velha guarda que, esses sim, lhe sabiam fazer perguntas, quando novamente me perco nas subtilezas dos pontos de açúcar necessários à confecção das hóstias de amêndoa, do toucinho do céu, dos papos de anjo e das bolachas do Bom Jesus.

A culpa deste desencontro entre o eu que pensa e divaga e o mim que escreve é uma espécie de idiossincrasia nacional, tal como as quantidades de ovos nos doces que aqui deu que escrever à Lucy Pepper e a mim que pensar. Escreve a Lucy Pepper: “o Portugal de hoje está cheio de pastelarias cujas montras gritam “AMARELO de OVO!!!”, e estranhamente os portugueses adoram. As montras e os balcões nas pastelarias e nos restaurantes abarrotam de montes indiscriminados de ovo: fios, trouxas, tortas, pudins, molhos de ovos, farófias, pães-de-ló com centro de líquido de ovo, doce de ovos, rebuçados de ovos, ovos-moles, e aquela criatura misteriosa, a lampreia de ovos (…) Em inglês, há uma expressão, “over-egg the pudding”. É intraduzível para português. Posso traduzir literalmente, claro (pôr ovos a mais no pudim, ou seja, abusar de uma coisa boa até estragar tudo). Mas em Portugal, o conceito de pôr ovos a mais em qualquer coisa não existe, ou antes, é até impensável. E não é só o facto de 97.5% da doçaria ter ovo em excesso: é que 97.5% dos portugueses desmaiam de amor pela gosma amarela”.

É claro que não preciso de explicar que uma brisa do Tâmega (12 gemas e ½ kg de açúcar em ponto pérola) ou uma encharcada do Convento de Santa Clara (22 gemas e 750g de açúcar também em ponto pérola) não se confundem de modo algum no palato de um português. Mas sobretudo não é isso que conta. O que interessa é que as gemas não são gemas. São metáforas. Imagens, alegorias desse mundo barroco de freiras namorando na grade e compondo em versos e escalas de pontos de açúcar tudo o que do amor imaginavam:

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“Amor, se ua mudança imaginada/ É já com tal rigor minha homicida/ Que será se passar de ser temida/ A ser, como temida, averiguada?”

escrevia no Convento de Nossa Senhora da Rosa, em Lisboa, no século XVII, Soror Violante do Céu. Pelos conventos do país havia quem formulasse a mesma pergunta por outras palavras: ponto de pasta, ponto de fio, ponto de pérola, ponto de rebuçado, ponto de estrada, ponto assoprado, ponto de caramelo, ponto de espadana… “Que fará se chegar a ser sabida?/ Que fará se passar de suspeitada?”

De cada vez que chega um novo papa ao Vaticano levo um tempo em angústia ou agasturas como se diz nesse Alentejo onde as freirinhas se azafamaram um em torno de um torrão que resulta nada mais nada menos que da sábia junção de 60 gemas com meio quilo de amêndoas e um quilo de açúcar em ponto de espadana. Receio que Sua Santidade no ímpeto da novidade em vez de se virar para o Banco do Vaticano, para os teólogos da libertação ou para os padres casadoiros, ponha os olhos neste seu rincão e descubra que nesta terra os caminhos da fé levaram a que Nossa Senhora seja não apenas patrona de touradas – coisa que humanamente bem se entende porque diante um touro qualquer um de nós grita pela mãe e por maioria de razão e medo pela mãe de Deus – como que, em Portugal, o Euromilhões, o Totoloto, a Lotaria Clássica, a Lotaria Popular, a Raspadinha e o Totobola sejam assunto da teologia, pois a tutela de tais jogos cabe a Nossa Senhora da Misericórdia. Não acabam contudo aqui os meus temores diante do escrúpulo papal que receio o texto da Lucy Pepper venha agravar. Suponhamos que num momento de fastio Sua Santidade percebe que este santo povo anda inocentemente, por assim dizer, mordendo aqui uma orelha de abade, trincando ali um pescoço de freira? Isto para não falar das variações entre barrigas e barriguinhas de freira, destrinça que não se entende como escapou aos rigores da Santíssima Inquisição tanto mais que as receitas variam entre os três e os 18 ovos.

Enfim valha-nos a fé que outros assuntos mais urgentes ocuparão as mentes de quem se senta na cadeira de Pedro e deixem-nos a nós, aqui nesta terra, a hesitar entre um bolo do paraíso ou um manjar celeste, tudo obra de gema e açúcar nascida das mãos e da terrena demanda das freiras do Convento de Santa Clara.

Dir-se-á que os doces que os portugueses hoje fazem são outros. Pois são. E aí chegamos novamente aos doces enquanto metáfora. Se repararmos bem cada época tem os seus doces. Os meninos nascidos nos anos 60 comiam pudinzinhos flan em pequenas formas de alumínio, fatias de salame de chocolate e bolo de bolacha. (E claro as tais lampreias de ovo nos casamentos que troco de boa vontade por essa mistura épica de doce de amêndoa, doce de ovos e doce de chila que em Beja ganha a forma de porquinho.)

Mas esse era o tempo em que ainda não se tinha descoberto a obesidade infantil e as crianças lambiam a taça dos bolos antes de derreterem as calorias e os açúcares em horas de jogos e saltos. Creio mesmo que o princípio desta nossa triste vida em que tudo é um trauma e a realidade algo que tem de ser filtrado nasceu quando atingimos a idade adulta e trocámos o pão-de-ló pelo bolo de iogurte. Nunca vi nada tão desengraçado quanto o bolo de iogurte mas não há nada a fazer: o bolo de iogurte é um símbolo do que fomos durante uns anos. O bolo de iogurte é um bolo mas não faz mal como os outros bolos. O bolo de iogurte é um bolo mas não dá trabalho como os outros bolos. O bolo de iogurte é um bolo que sendo um bolo se pode comer como se não fosse um bolo… O bolo de iogurte é um alegado bolo.

E por isso vejo com alegria essas montras cheias de “fios, trouxas, tortas, pudins, molhos de ovos, farófias, pães-de-ló com centro de líquido de ovo, doce de ovos, rebuçados de ovos, ovos-moles”. Até o ressuscitar da tarte de amêndoa – estão a ver aquela massa crocante que resulta da mistura de manteiga, açúcar, amêndoa… com que nos empanturrávamos nos idos de 70 e 80 do século passado e que agora esta outra vez na moda? – me parece um sinal de recuperação da sanidade.

Ovos a mais? Talvez. Mas se enquanto se vão comendo uns ovos-moles de Aveiro se lerem estes versos escritos no século XVII, por Soror Violante obviamente, “Será merecimento a indignidade/ Defeito a perfeição, culpa a defensa/ Intrépido o temor, dura piedade,/ Delito a obrigação, favor a ofensa/Verdadeira a traição, falsa a verdade,/Antes que vosso amor meu peito vença” então percebe-se que não está nada a mais: nem palavras, nem gemas, nem açúcar.