Na sequência da restauração monárquica em Espanha, em 1876, com o advento de Afonso XII de Bourbon, filho da desequilibrada Isabel II destronada em 1868, pôs-se cobro ao acidentado “sexénio revolucionário”, que culminou mais de três décadas de motins e pronunciamentos militares agravados pela guerra civil ateada pelos “carlistas”, que nunca se conformaram nem com a sucessão de Isabel nem com o constitucionalismo inaugurado em 1834. Tirando o flagelo carlista, bem como a incomparável ferocidade das lutas políticas em Espanha – quem se “pronunciava” e perdia era fuzilado, ao passo que entre nós as revoltas e conspirações se tornaram uma espécie de desporto nacional em que ninguém arriscava verdadeiramente a pele – o fundo do problema não era, em essência, distinto do que esteve na origem da turbulência vivida em Portugal no séc. XIX: a incompatibilidade entre liberais mais ou menos conservadores, adeptos de um governo forte, e liberais mais ou menos radicais, a pender para a democracia (incluindo uma minoria abertamente republicana). Certo é que em Espanha o conservadorismo era duro e se revelou uma coisa séria – quando entre nós até a Direita se dizia liberal e progressista – e que o potencial subversivo de “demócratas” e republicanos era bem mais perigoso do que o dos seus congéneres lusitanos.

Afonso XII, nascido em 1857, subiu ao trono em 1876. O “sexénio revolucionário” (1868-74) decorrera em constante atribulação, entre governos provisórios, a efémera monarquia de Amadeu de Sabóia e a I República, liquidada em Janeiro de 1874 por um golpe de Estado do general Pavia. Mas a restauração monárquica só teria lugar após o pronunciamento vitorioso do general Martinez-Campos em Dezembro daquele ano. O futuro Afonso II, que acompanhara a mãe no exílio, regressou a Espanha em 1875. No ano seguinte, as Cortes Gerais aprovaram uma nova Constituição, e data dessa altura a inauguração oficial do reinado do jovem rei, então com 19 anos.
Durante a sua ausência em França, e enquanto crescia e revelava o tino que a sua mãe nunca tivera, a defesa da causa da sucessão afonsina esteve a cargo de Antonio Cánovas del Castillo, nascido em 1828 e assassinado em 1897 por um anarquista italiano. Cánovas, fundador do Partido Liberal-Conservador, foi o principal arquitecto do regime da “Restauração”, que proporcionaria à Espanha um quarto de século de paz e ventura como aquela nunca conhecera desde a inauguração do constitucionalismo monárquico.

Cánovas era católico, monárquico, espanhol, liberal e conservador. Possuía um excepcional talento político e era um perfeito cavalheiro, dotado daquela “hombridad” para que nem existe tradução rigorosa em português. Mas nem o acordo dos adversários sobre a norma constitucional, finalmente alcançado com a Constituição de 1876, nem a sua arte, que era muita, teriam bastado para instaurar uma duradoira rotação regrada e pacífica entre conservadores e progressistas. O “turno” espanhol exigia, por definição, um parceiro alternativo, dotado do mesmo espírito conciliador e fidelidade ao compromisso que caracterizavam o seu opositor à Direita. Por uma feliz coincidência histórica, Cánovas cruzou-se com Mateo Sagasta (1825-1903), outro homem de grande carácter que era o chefe do Partido Progressista, crente em que a monarquia não era incompatível com a liberdade e até um módico de democracia.

O “turno” espanhol assentava porém em mais um requisito imprescindível e igualmente inédito. Cánovas e Sagasta firmaram um acordo não escrito nos termos do qual nenhum deles se apropriaria do programa do outro, numa ânsia de antecipação em busca de popularidade, mas, por outro lado, também nenhum deles, chegado na sua vez ao poder, revogaria as medidas mais emblemáticas tomadas pelo antecessor. Tendo sucedido a Cánovas em 1881, Sagasta decretou o Sufrágio Universal, satisfazendo uma antiga aspiração do progressismo espanhol. Regressado à Presidência do governo em 1883, Cánovas, discordando embora da indiscriminada concessão do voto às massas pobres e analfabetas, manteve intacta a lei eleitoral herdada do seu parceiro.

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O actual governo português empreendeu uma profunda reforma da Justiça, procedendo a uma reorganização da rede judicial que implicou a supressão de um número considerável de tribunais. Fê-lo num país onde toda a gente aspira a ter tribunal, hospital, maternidade e escola ao lado da porta de casa, sem se lembrar que os custos de tais luxos são pagos com os impostos de todos. A reforma da Justiça, por conseguinte, prestava-se à maravilha à exploração de egoísmos, bairrismos e regionalismos por parte de quem não imagina causas mais nobres para captar o voto do eleitorado (e também por parte de muito jornalismo que se dedica a exercícios de indignação).

Ainda não estavam instalados os contentores onde alguns juízes teriam provisoriamente de exercer a função de julgar, e já o presidente da distrital socialista do Porto, José Luís Carneiro, anunciava com espalhafato que a reforma seria liminarmente revogada tão logo chegasse o auspicioso momento de o Partido Socialista governar. Nessa altura, os impostos pagariam os custos de repor tudo como estava, ou seja, de restaurar a arcaica organização judicial portuguesa, cristalizada num imobilismo indiferente à evolução demográfica e às mudanças na distribuição populacional do país. Que importa ? Quanto ao preço, paga o Orçamento e a Dívida. Quanto ao retrocesso, é nada comparado com a glória de liquidar uma obra do PSD.

Cánovas e Sagasta tinham compreendido que um país não progride quando os partidos que chegam ao poder se dedicam a destruir a marca dos antecessores; que o progresso pacífico deve integrar os contributos válidos de todos, para que o país no seu conjunto, que não obedece a uma cor única, se reveja numa realização comum; e que a governação não pode ser instrumento de vingança política. De contrário, não se vai a lado nenhum.

Historiadora