Napoleão Bonaparte, Philippe Pétain e Otelo Saraiva de Carvalho foram três militares cujos percursos conheceram luzes e sombras. Por isso, não obstante o tempo decorrido em relação ao imperador e marechal franceses, continuam a ser figuras tão controversas e polémicas quanto o agora desaparecido “capitão de Abril”.
Recordo, do meu tempo de seminarista em Roma, um professor de História da Igreja que tinha uma embirração especial por Napoleão. Era nossa diversão provocá-lo a esse propósito, o que não era difícil, porque bastava elogiar o imperador francês, nem que fosse pelos seus feitos bélicos, para que o dito professor reagisse de imediato, contrapondo todo o mal que Bonaparte tinha feito à Igreja. Para este efeito, recordava que o dito imperador tinha sequestrado Pio VII, que levou para França e obrigou a assinar uma Concordata, que depois o pontífice romano denunciou, e quis que o Papa presidisse à sua coroação imperial mas, quando este se dispunha a coroá-lo, tirou-lhe a coroa das mãos e coroou-se a si próprio. Este seu gesto de insuportável arrogância levou Beethoven a retirar a dedicatória que lhe tinha feito da Eroica, a sua terceira sinfonia. O imperador francês deu ao seu único filho o título de Rei de Roma, numa clara afronta ao Papa, que era, desde tempos imemoriais, o soberano de Roma e dos Estados pontifícios.
Não restam dúvidas quanto à importância histórica de Napoleão I, mas não é consensual o veredicto quanto ao seu legado, não isento de contradições. Com efeito, o jovem general da revolução francesa transformou o regime democrático numa nova tirania. Por outro lado, espalhou a guerra por toda a Europa: o nosso país não chegou a ser dominado por Bonaparte, mas sofreu três invasões francesas, de que há a lamentar as baixas causadas e as pilhagens efectuadas pelos exércitos invasores.
Outra figura controversa, que continua a dividir os franceses, é o Marechal Philippe Pétain. Herói da primeira Guerra Mundial, o vencedor de Verdun foi, na segunda Guerra Mundial, responsável por ter permitido a ocupação de quase toda a França pelas tropas nazis. Pior foi a sua colaboração com o regime nacional-socialista de Hitler, nomeadamente na deportação de cerca de 150 mil judeus franceses. Se a França se tivesse limitado a perder, em termos militares, a guerra, teria conservado a sua honra, o que não aconteceu com a capitulação de Pétain. De facto, a França foi derrotada, militar e politicamente, não obstante o heroísmo da resistência, chefiada pelo General de Gaule.
Depois de libertada pelos aliados do jugo nazi, a derrotada França uniu-se às potências vencedoras. O anterior presidente da República, Philippe Pétain, e o seu primeiro-ministro, Pierre Laval, foram condenados à morte mas, tendo em conta a avançada idade do herói da primeira Guerra Mundial, a sua pena foi comutada na de prisão perpétua, que cumpriu até ao último dos seus dias. Apesar de não ser réu de nenhum crime de sangue e ter sido herói de guerra, não foi indultado, nem amnistiado.
Ainda hoje, o Marechal Pétain é objecto de acesa polémica em França: se alguns entendem que foi injustiçado, porque foi com o intuito de servir os interesses da sua pátria que aceitou ser seu presidente no período da ocupação germânica, outros há que não lhe perdoam a atitude colaboracionista com o regime nacional-socialista.
Ninguém nega a importância da participação de Otelo Saraiva de Carvalho no 25 de Abril. Essa acção, a que não houve oposição bélica, não é comparável a uma batalha: foi, apenas, um golpe de Estado de natureza militar. Claro que o carácter pacífico do 25 de Abril não retira mérito aos capitães de Abril que, certamente, muito arriscaram, em termos pessoais, para devolver a liberdade ao nosso país.
Com certeza que o cidadão Saraiva de Carvalho, como qualquer outro português, tinha toda a liberdade para defender as teses políticas que quisesse: foi precisamente para isto que se fez o 25 de Abril! O que Saraiva de Carvalho não tinha direito era de cometer acções que, segundo o Código Penal Português, são crimes: as Forças Populares 25 de Abril foram responsáveis por 17 assassinatos, sendo uma das vítimas mortais uma criança recém-nascida. As competentes instâncias judiciais, ante as quais se defendeu, julgaram-no culpado, impondo-lhe, em 1986, uma pena de 15 anos de prisão, que não cumpriu, por ter sido indultado em 1991 e amnistiado em 2004. O indulto e a amnistia de que beneficiou, sem ter sido herói de guerra e tendo cometido crimes de sangue, foi um insulto às vítimas e à justiça portuguesa que, pelos vistos, tem dois pesos e duas medidas. Com efeito, qualquer cidadão que tivesse cometido os mesmos actos praticados por Saraiva de Carvalho, teria sido punido com as consequências previstas na lei para estes crimes, enquanto o agora desaparecido capitão de Abril beneficiou de uma escandalosa excepção, que contradiz o princípio da igualdade de todos os cidadãos ante a lei.
É compreensível a revolta dos familiares das vítimas das FP25, porque os crimes de que resultaram essas mortes, ficaram impunes. Como escreveu Bento XVI: “o ateísmo dos séculos XIX e XX é, de acordo com as suas raízes e finalidade, um moralismo: um protesto contra as injustiças do mundo e da história universal. Um mundo, onde exista uma tal dimensão de injustiça, de sofrimento dos inocentes e de cinismo do poder, não pode ser a obra de um Deus bom. O Deus que tivesse a responsabilidade de um mundo assim, não seria um Deus justo e menos ainda um Deus bom” (Spe salvi, 42).
O Papa emérito está “convencido de que a questão da justiça constitui o argumento essencial – em todo o caso o argumento mais forte – a favor da fé na vida eterna”. Que a certeza da justiça divina console as vítimas das injustiças humanas, para que não alimentem nenhum ódio, ressentimento, ou propósito de vingança: “Deus existe, e Deus sabe criar a justiça num modo que nós não somos capazes de conceber, mas que, pela fé, podemos intuir. Sim, (…) existe uma justiça.” Com efeito, “só Deus pode criar justiça. E a fé dá-nos a certeza: Ele o faz” (Spe salvi, 43).
A Deus compete a justiça e aos homens a caridade de perdoar, rezar e amar os inimigos, como Jesus ensinou e fez. “A imagem do Juízo final não é primariamente uma imagem aterradora, mas de esperança; a nosso ver, talvez mesmo a imagem decisiva da esperança” (Spe salvi, 43). Deus é justo e misericordioso e assim devem ser também os cristãos, porque se sabem pecadores e “o juízo será sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia, mas a misericórdia triunfa do juízo” (Tg 2,13).