Este fim-de-semana fui a Estocolmo assistir ao concerto final da última digressão de Elton John. Peço ao leitor para não se deixar distrair pela inveja. Ou pelo gozo. Provavelmente, pelo gozo. Este preâmbulo tem uma razão de ser. É que o velho Reginald não foi a única relíquia bem preservada que eu vi na Suécia. Também visitei o Museu do Vasa, uma exposição toda dedicada a um navio de guerra naufragado no século XVII e retirado quase intacto das águas do porto de Estocolmo há 70 anos.
A 10 de Agosto de 1628, o Vasa é lançado ao mar. Encomendado pelo Rei Gustavo Adolfo como demonstração do poder naval da Suécia, era para ser o navio mais imponente de todo o Báltico. Era e foi durante cerca de meia-hora, o tempo que demorou a percorrer os 1300 m da viagem inaugural entre o estaleiro e o fundo do mar. Para ser rigoroso foram 1332m: 1300m na horizontal, 32m na vertical.
Pouco tempo depois de zarpar, uma rajada de vento fez o navio adernar a bombordo, submergindo as portinholas de artilharia. A água invadiu o interior e conseguiu, em minutos, o que decerto iria demorar anos a todas as marinhas da região.
O fiasco deveu-se à ambição do Rei que, já durante a construção, quis aumentar o tamanho do navio. Entretanto, o competente construtor naval tinha morrido e quem o substituiu limitou-se a adaptar as medidas por uma regra de três simples, sem cuidar que a largura do navio deveria aumentar mais do que o comprimento, nem acautelar o centro de gravidade, que deveria baixar. Foi o que bastou para o naufrágio.
Mais de trezentos anos depois, os suecos retiraram o Vasa do lodo, limparam-no, montaram-no de novo, recuperaram o que era possível, reconstruíram o irrecuperável e ergueram um museu à sua volta. Exibem agora, com indisfarçável orgulho, o seu falhanço.
Numa das raras coincidências que o cronista não tem de forçar, fiquei a conhecer esta história de barracada estatal com um meio de transporte caro na mesma semana em que surgiram novidades na Comissão da TAP. Enquanto os suecos revelam ao mundo o seu fracasso com uma ode à incompetência, nós camuflamos com o Relatório Preliminar da CPI.
O relatório preliminar faz jus ao nome. Como qualquer preliminar, deixa-nos de sentidos alertas, preparados para o que aí vem à bruta. Tem-se dito que Ana Paula Bernardo branqueou o papel do Governo nas trapalhadas da TAP. É uma grande injustiça para com a deputada do PS. Branqueamento é o que faz uma mulher-a-dias vagamente empenhada. O serviço que Ana Paula Bernardo presta é digno da Deathclean, a empresa especializada em limpeza e desinfecção de cenas de crime. Tem grande experiência em homicídios, suicídios e decomposições. Que é justamente o departamento que trataria da TAP, se a AR tivesse subcontratado os serviços da Deathclean em vez de dar a tarefa a Ana Paula Bernardo.
Os funcionários da Deathclean apresentam-se com fatos Hazmat para evitar qualquer contaminação. Ana Paula não precisa, pois é uma daquelas militantes partidárias de plástico. A deputada apagou quaisquer restos de fluidos corporais. Não há vestígio do sangue da CEO francesa, nem do ranho do Galamba. E também conseguiu eliminar os odores desagraváveis, utilizando o produto Âmbito Pur: sempre que um tema começava a tresandar, ela dizia “não cabe no âmbito” e o pivete desaparecia, substituído por um leve aroma a lavanda.
Foi o que aconteceu com o episódio do Ministério das Infraestruturas. Face a um Ministro indicar à CEO da TAP que ela deveria combinar com deputados do PS o que dizer no Parlamento e que, para esconder isso, despede um adjunto e manda os serviços secretos atrás dele, Ana Paula Bernardo considera que isso não se enquadra no âmbito de uma comissão de inquérito que avalia se o Governo pratica algum tipo de ingerência ilegítima na companhia. Pôr a Ana Paula Bernardo a retirar conclusões da CPI é o mesmo que ter o Himmler a presidir aos Julgamentos de Nuremberga. “Gás? Isso não está no âmbito, pá”.
O trabalho de Ana Paula é ainda mais admirável porque ao afirmar que não há ingerência do Governo na TAP está a admitir que há ingerência do Governo na TAP. Não há outra maneira de justificar as conclusões da relatora. É que toda a gente assistiu à CPI e sabe o que se passou entre o Governo e a TAP. Fingir que não aconteceu nada é um tipo de miopia só possível por indicação superior.
Ana Paula Bernardo faz a figura de uma aluna a apresentar o resumo de um livro na aula, depois dos colegas já o terem lido: “O Amor de Perdição é uma obra de Gil Vicente e trata da chegada de Marcianos a Pernambuco em 1786”.
Este relatório é um policial de Agatha Christie em que, depois de lermos várias pistas sobre o cadáver encontrado com 27 facadas nas costas, aparece Hercule Bernardo e conclui: “Foi suicídio”. “Como, se faca estava enrolada numa fralda, escondida na bagagem de Lady McAldrab?”, pergunta o Capitão Doobson. “Foi o morto que a colocou lá, para despistar. Era velhaco”, responde a deputada.
Entretanto, o Ministro da Cultura disse que a prestação dos deputados na CPI lhe fez lembrar a de procuradores do cinema americano de série B da década de 80. Sendo as minhas referências cinematográficas mais comerciais, a personagem que me vem à cabeça a propósito do relatório preliminar é a do Mr. Wolf. No Pulp Fiction, Mr. Wolf é o resolvedor de problemas que, em menos de 40 minutos, trata de um corpo com a cabeça esburacada, do interior de um carro recheado com miolos e de dois assassinos encharcados em sangue. Os procuradores de série B bem se esforçaram, mas Ana Paula Wolf resolveu.
Será que um dia teremos um museu dedicado à TAP, como a Suécia tem o do Vasa? Duvido. Onde os suecos mostram o erro para aprenderem a lição e não o repetirem, nós ofuscamos tudo para que daqui a duas semanas se metam as férias e nunca mais ninguém se lembre. Se o Vasa fosse português, não só não o desenterrávamos do lodo com ainda despejávamos mais lodo para cima dos destroços, só para garantir que ninguém o ia lá buscar. E ainda arranjávamos um primo que vendesse lodo de baixa qualidade, sobrefacturávamos e dividíamos o esbulho.
Esta comparação não pretende contribuir para o clichê que diz que a Europa do Norte é que é civilizada e nós aqui no Sul somos uns bandalhos. Até porque, na realidade, não somos assim tão diferentes. Quer os suecos com o Vasa, quer nós com a TAP, ignorámos a questão da gravidade. A única diferença é que eles fizeram-no por ignorância e nós, percebeu-se com este relatório, ignoramos de propósito e ostensivamente.
E, por mais bem organizada e séria que a Suécia seja, até que ponto devemos admirar bárbaros que põem anis na água em que cozem o marisco? É verdade, eu vi. Aliás, provei. Gambas com travo a Licor Beirão, lagosta a saber a chá de erva-doce. Vêem? Não é só em Portugal que se lixa o mexilhão.